“Sofria sem ser quem eu era e agora sofro sendo quem eu sou”. Era uma tarde de domingo, 10 de dezembro de 2017, quando Tiffany Abreu fez história. Aos 33 anos, ela entrou em quadra no jogo de seu time, o Vôlei Bauru, contra o São Caetano e se tornou a primeira transexual a atuar na elite do vôlei brasileiro. Mais do que isso, ela se tornou exemplo na luta pela abertura à transexualidade no esporte e símbolo de esperança para tantos outros que, assim como ela, têm o direito de lutar pelos seus sonhos.
Tiffany sempre soube que era mulher. Mas por falta de informações na época, ela só conheceu o termo transexual aos 19 anos, através de um amigo. E o processo de transição, no entanto, só foi acontecer cerca de oito anos depois, quando estava com 27. Nesse meio tempo, porém, a vida de Tiffany não foi fácil.
“Desde criança sempre sofri. São pessoas que não aceitam que são preconceituosas com elas mesmo, por não fazerem parte de uma sociedade perfeita ou como nos contos de fadas da cabeça delas. E acabam atacando outras como eu”, disse Tiffany em entrevista exclusiva ao Olimpíada Todo Dia.
Em meio ao preconceito e ao bullying sofrido na escola e na vida, de maneira geral, a goiana chegou a jogar na Superliga masculina de vôlei, pelos times Juiz de Fora e Foz do Iguaçu, e também em vários países na Europa.
O ponto de virada
Mas em 2012, a depressão colocou um ponto final no sofrimento de Tiffany. Ela optou por seguir em frente com o processo de transição e dois anos depois, passou pela cirurgia de redesignação sexual. Na época, ela achava que não poderia mais jogar vôlei, nem feminino, com medo de “matar” uma menina no jogo. Seu empresário, no entanto, explicou que, ao fim da transição e com a documentação correta, ela poderia jogar.
E em 2017, veio a primeira vitória. A FIVB (Federação Internacional de Vôlei) permitiu que ela jogasse em ligas femininas. Seu primeiro jogo entre as mulheres foi na segunda divisão italiana, em fevereiro, meses antes de fazer história no Brasil.
O pioneirismo de Tiffany, porém, deu – e dá – o que falar. “Sofria sem ser quem eu era e agora sofro sendo quem eu sou”. A discussão, porém, vai muito além das quadras de vôlei e abre um debate mais amplo.
O que diz a ciência
Em 2003, o COI (Comitê Olímpico Internacional) fez uma resolução que permitia que atletas transexuais participassem dos Jogos Olímpicos, desde que passassem pela cirurgia de redesignação sexual. Em 2016, a obrigatoriedade da cirurgia, no entanto, caiu. Ou seja, basta uma pessoa se declarar trans para ser reconhecida como tal.
Para estar apto(a) a competir em Olimpíadas, os atletas trans precisam se adequar a algumas exigências. Na regulamentação do COI, a atleta trans deve se identificar como tal há pelo menos quatro anos e estar há pelo menos um ano em hormonioterapia, com níveis de testosterona menor que 10 nmol/L. No caso dos homens trans, a testosterona tem que estar dentro dos níveis de referência para homens e eles devem ter uma declaração que fazem este tratamento para transição de gênero.
Os parâmetros, no entanto, continuam gerando debate. Há quem questione se uma mulher transexual não levaria vantagem ao jogar no feminino. E se um homem transexual não ficaria em desvantagem ao disputar o masculino. E para entender melhor o assunto, o Olimpíada Todo Dia conversou com três especialistas.
Diferenças consideráveis
“Até a puberdade, as meninas e os meninos são muito semelhantes em altura, massa muscular, tamanho do coração, capacidade aeróbica e, consequentemente, em performance esportiva. A partir da puberdade, quando os hormônios entram efetivamente em ação, há maior produção de estradiol nas mulheres e de testosterona nos homens. E a partir daí, as mudanças que isso causa são muito grandes. O volume do coração, a capacidade pulmonar, massa muscular…”, explica Tathiana Parmigiano, ginecologista do COB (Comitê Olímpico do Brasil).
“E isso acaba impactando na performance. Então se a pessoa transexual fizesse a transição antes da puberdade, ele poderia competir em grau de igualdade. Uma vez que isso seja feito depois, essa igualdade não existe mais. No caso das mulheres trans, a simples aferição do nível de testosterona não vai ser suficiente para dizer que eles são iguais. Porque existiu um período todo depois da puberdade em que capacidades fisiológicas foram desenvolvidas de maneiras diferentes em decorrência do hormônio que preponderava. Claro que existe a necessidade de inclusão da transexualidade no esporte, mas ainda tem muito a ser feito”, completa.
Vantagens e desvantagens, caso a caso
“Se uma mulher trans leva vantagem na categoria feminina? Depende, vários fatores estão envolvidos. Depende da genética do corpo desta pessoa, que pode ter mais massa magra, de quando começou a terapia hormonal e por quanto tempo está fazendo. Além disso, existe uma perda de rendimento físico com a terapia e também da força muscular, o que as colocaria com certeza em desvantagem a homens. Mas estar em condições de igualdade com mulheres, depende. Os casos devem ser avaliados um a um”, pondera Karen Marca, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
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“E que um homem trans poderia ter mais dificuldades em categorias masculinas? Se for uma competição que necessite de altura, pode ser, porque em geral as mulheres cisgênero são menores que os homens cis. Mas já foi visto que após um ano de terapia hormonal, já temos níveis de testosterona e aumento da massa magra nos homens trans comparáveis a de homens cis”, acrescenta.
Falta de dados dificulta consenso
“A dificuldade (de consenso e entendimento) sobre transexualidade no esporte vem da falta de pesquisas sobre o assunto. A população trans que passa por transição hormonal é relativamente pequena, e destes, pouquíssimos são atletas de nível competitivo. Além disso, o efeito anabolizante da testosterona é considerado doping em quase todos os esportes. Não há consenso sobre os níveis hormonais da transição para os homens trans, ou se a exposição prévia à testosterona das mulheres trans representa uma vantagem indevida”, esclarece o ginecologista e sexólogo, Theo Lerner.
“De qualquer forma, a questão da transexualidade no esporte levanta uma discussão importante sobre os critérios que definem o gênero e tem levado à mudanças destes critérios por parte das organizações esportivas”, finaliza.
A luta continua
Apesar de ainda haver muitos questionamentos e pouco consenso sobre transexualidade no esporte, a luta dos atletas transexuais persiste. Por isso, é necessária a união e o esforço de todos para chegar nesse tão esperado consenso, que contemple todas as partes envolvidas. E enquanto isso não acontece, Tiffany Abreu segue fazendo história.
“Eu faço meu trabalho nas quadras e luto não somente por pessoas trans. Eu luto por pessoas, por seres humanos. Sejam transexual, cisgênero, hétero ou LGBTQIA+… Porque eu luto por igualdade, por oportunidades, por respeito e por um esporte para todos”, concluiu Tiffany.
A razão da semana LGBTQIA+
Este texto dá sequência à série de matérias do Olimpíada Todo Dia sobre o tema LGBTQIA+. O período foi escolhido por ser a semana do dia 28 de junho, reconhecido como dia do orgulho LGBTQIA+.
A data ganhou este título por conta do que aconteceu no bar Stonewall Inn, em Nova York, em 28 de junho de 1969. Neste dia, as pessoas da comunidade gay que frequentavam o estabelecimento se revoltaram contra ações policiais que aconteciam com frequência. O levante contra a situação durou cerca de duas noites e, por conta disso, em de 1º de julho de 1970 aconteceu a primeira edição da Parada do LGBT.
Vale ressaltar que o respeito e a visibilidade à comunidade devem prevalecer sempre, assim como a luta pela diversidade no esporte, e não apenas no mês do orgulho LGBTQIA+.