No dia 22 de abril de 1500, o navegador português Pedro Álvares Cabral ancorou em uma terra desconhecida denominada por ele de Ilha de Vera Cruz, após se perder no Oceano Atlântico na tentativa de encontrar o caminho para as Índias. Estava assim, descoberto o Brasil.
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No aniversário de 520 anos do descobrimento, o Olimpíada Todo Dia (OTD) preparou uma série de reportagens especiais sobre a conexão esportiva entre Brasil e Portugal. Já abordaremos a história de alguns atletas do Brasil que foram na contramão da rota de Cabral e saíram do país na busca por melhores condições de vida e resultados, descobrindo na “Terrinha” a sua segunda casa.
Agora, contaremos a história de um atleta português que descobriu nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 um momento único em sua vida. João Rodrigues, natural de Santa Cruz, na região da Madeira, é um ex-atleta da vela portuguesa . Ele foi o porta-bandeiras de Portugal na cerimônia de abertura há quatro anos, um dos maiores momentos em sua vida profissional, segundo ele próprio.
A Olimpíada do Rio de Janeiro foi ainda mais marcante para João. Foi nela que o velejador se aposentou após representar seu país em sete edições seguidas de Jogos Olímpicos.
Em entrevista exclusiva ao OTD, o atual presidente da Comissão de Atletas de Portugal relembrou os sentimentos que teve ao ver a bandeira lusa flamejar dentro de um Maracanã que aplaudiu os portugueses de pé, o carinho do Brasil com os portugueses, estádios, sua amizade com um atleta brasileiro de windsurf e muito mais.
Quando procuramos João Rodrigues através das redes sociais, pensávamos que entrevistaríamos um atleta. Não tínhamos ideia de que falaríamos com um velejador com dotes líricos exuberantes, certamente inspirados em gênios da literatura portuguesa como Saramago e Camões. A resposta do velejador sobre os problemas que teve no Brasil ao ligar para uma loja de conserto de geladeiras é digna de uma cronista cômico. Confira a entrevista na sequência e delicie-se.
OTD – Como foi a sua experiência nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016?
João Rodrigues – A experiência nos Jogos Olímpicos Rio 2016 foi inesquecível! Para nós portugueses, foi com particular emoção que fizemos parte daquele evento. Realizado no nosso país irmão, com quem temos ligações afetivas seculares, que fala a mesma língua e cuja história de ambos os países tantas vezes se funde, associado ao fato de todos os portugueses, de uma forma ou de outra, terem relações familiares ou de amizade com algum brasileiro, tornou esta Missão Portuguesa a Terras de Vera Cruz um marco nas nossas vidas.
Por outro lado, e isto foi algo inesperado, a forma como o povo brasileiro nos recebeu, nos apoiou, torceu por nós, foi, extraordinário, embora nem sei bem que expressão usar, pois palavras não fariam justiça ao que vivemos.
Creio que o momento mais bonito, e que de certa forma, reveste-se de um simbolismo muito forte, terá acontecido na cerimônia de abertura. No momento em que a comitiva lusa entrou naquele estádio, o nome de Portugal ecoou de forma ensurdecedora! Jamais, jamais esquecerei aqueles breves minutos que nos levaram a percorrer a pista do Estádio do Maracanã.
João Rodrigues, porta-bandeira de Portugal na Rio 2016
Ainda hoje, quando vejo imagens daqueles momentos, não posso deixar de notar o entusiasmo de todos os atletas e oficiais! Que momento tão marcante para todos nós! Mas há uma explicação para toda aquela emoção, que explodiu quando entramos no estádio. Naquelas duas horas que antecederam aquele momento, no percurso entre a Vila Olímpica e o Estádio Olímpico, fomos tão entusiasticamente acarinhados pelos brasileiros, que à medida que nos aproximávamos da entrada, íamos inevitavelmente ganhando uma espécie de euforia.
E quando entrámos, só nos apetecia a todos saltar e gritar, afogados que estávamos em adrenalina! O que literalmente, fizemos!
O fim de uma longa carreira olímpica
Finalmente, do ponto de vista pessoal, estes Jogos Olímpicos marcaram o fim da minha carreira desportiva e não poderia ter o privilégio de o fazer em melhor contexto. O fato de ter sido escolhido como Porta Estandarte do meu país na cerimônia de abertura, foi a cereja no topo do bolo. Foi uma enorme honra, um profundo privilégio, mas acima de tudo, uma incomensurável alegria poder acabar um percurso que me levara a todos os mares desse mundo, daquela forma, naquele país, naquela cidade maravilhosa!
Quando caiu o pano sobre a derradeira regata na baía de Guanabara, com aqueles morros como pano de fundo, o Pão de Açúcar, o Cristo Corcovado, a Pedra da Gávea, já com o sol a se esconder no horizonte, sabia que tinha ido ao limite do que me era possível, quer do ponto de vista físico, quer emocional.
E assim, terminava uma odisseia de mais de 30 anos, sete Jogos Olímpicos e milhares e milhares de regatas. Era uma vida com significado que tinha o seu epílogo naquele momento. Que espetáculo! Que imagem linda ficou gravada na minha memória como a fotografia final.
Anúncio do Rio como sede adiou a aposentadoria
Para que se possa compreender o meu estado de emoção nesses Jogos Olímpicos, é preciso andar um pouco para trás, para o dia em que o COI anunciou que o Rio de Janeiro receberia. A minha ideia inicial era terminar a minha carreira aos 40 anos, em Londres-2012. Mas naquele dia, soube que teria de adiar esse desfecho. Afinal, desde o início deste século, que treinava regularmente precisamente no Rio de Janeiro.
Amizade com Bimba e paixão pela cultura brasileira
Um dos meus melhores amigos, daquelas pessoas a quem chamamos irmão, mesmo que de outra mãe, vive em Búzios, provavelmente um dos melhores locais no planeta para velejar. Durante tantos anos, um quarteto de amigos – Ricardo “Bimba” Santos, do Brasil, David Mier y Teran do México e Ivan Pastor de Espanha – juntava-se durante meses no Rio de Janeiro para treinar. Esta amizade sobreviveu a cinco ciclos Olímpicos sem que, nestes anos todos, alguma vez tivéssemos sentido que aquele ambiente hiper competitivo, houvesse a beliscado.
O local que escolhemos foi unânime. Todos nós identificávamo-nos com a cultura brasileira, com aquela alegria, adorávamos a gastronomia, e amávamos Búzios e a baía de Guanabara!
Haviam muitos problemas? Poluição, insegurança, doenças? Sim, mas por estranhas artes, não fomos afectados. Encontramo-nos os quatro na linha de largada dos Jogos Olímpicos do Rio 2016 por uma última vez e foi um privilégio poder competir com eles.
João Rodrigues
A amizade que construímos é intemporal. Vivemos algo único, que teve muitas vezes o Brasil como cenário e essas vivências, perdurarão para sempre nas nossas memórias.
Passou por alguma situação curiosa no Brasil por diferentes culturais entre Brasil e Portugal?
Em Búzios, várias vezes senti-me um estrangeiro! Situações há, em que simplesmente não consigo fazer-me entender!
Vejam lá o que me aconteceu o ano passado, quando aluguei uma casa para mim. Certo dia o “frigorífico” avariou.
O conserto do “frigorífico“
Sempre que arrancava, a casa até estremecia e apercebi-me do problema pela ausência desse som estupidamente irritante do arrancar do compressor. Meus Deus, como odeio máquinas barulhentas. E pensar que tirei licenciatura em engenharia mecânica…
Bem, tinha pregado no dito aparelho um cartão de uma loja que reparava, entre outras coisas, este tipo de equipamento. Segue então o diálogo com a telefonista:
– Bom dia.
– Bom dia, tudo bem?
– Gostaria de saber se arranjam (arranjar em Portugal é o mesmo que consertar) frigoríficos?
– Oí?
– Sim, está a ouvir?
– Sim, sim, pode falar!
– Ah, gostaria de saber se arranjam frigoríficos?
– Oi?
– Percebeu?
– Percebi não…
– Hum, estou com um problema no meu frigorífico e queria saber se o poderiam arranjar?
– Ai minha Nossa Senhora, não tô entendendo nada do que o senhor tá dizendo, não…
– Então, é muito simples, é só me dizer se arranjam frigoríficos?
– Oi?
– Ó minha senhora, percebeu o que eu disse?
– Não. Pode repetir?
– Claro. Estou com um problema no meu frigorífico. Arranjam-no?
– Frigorífico?
– Sim, sim. Arranjam?
– Não!
– Ai não?! Mas eu pensei que vocês arranjavam frigoríficos. Não é da loja tal e tal?
– É sim senhor. Mas frigorífico, a gente não tem!
– Mas eu não quero comprar, eu quero só arranjar o meu.
– O seu? Você tem um frigorífico em casa????
– Claro, todo o mundo tem! E tenho um cartão que diz que vocês arranjam aparelhos electrodomésticos…
– Aqui não!
– Não?! Ora, mas eu não liguei para o número XYZ, da loja tal e tal?
– Sim.
– E o que é que vocês fazem aí?
– Oí?
– Ah meu Deus, está difícil isto… Que tipo de serviços vocês fazem aí?
– Ah, nós consertamos aparelhos quebrados.
– Boa!!!!! Então, consertam o meu frigorífico?
– Oi?
– Grrrrrr…. o meu FRIGORÍFICO, CONSERTAM?
– Mas você tem um frigorífico em casa?
– Ora bolas, pois eu já não disse isso? Espere aí, que tipo de aparelhos vocês consertam?
– Ah, nós consertamos ar condicionado, máquina de lavar, ventilador, geladeira…
– GELADEIRA! É isso mesmo! Arranjam a minha geladeira?
– Não.
– Não?! Ah, esqueci-me. CONSERTAM a minha geladeira?
– Sua geladeira quebrou? Claro! Porque você não disse logo????
– Mmmmrrrrrr… ok, então, podem cá vir?
– Sim senhor. Vou passar ao técnico. …
– Bom dia.
– Bom dia. Gostaria de saber se poderia consertar a minha geladeira que quebrou?
– Claro. Qual é o seu endereço?
– Fica no condomínio das janelas verdes, em frente à paragem de camionetas…
– Oi??
– Fica no condomínio das janelas verdes, em frente à paragem de camionetas…
– Como? Você pode repetir?
– Fica no condomínio das janelas verdes, em frente à paragem de camionetas!!!
– Senhor, não estou entendendo nada…
– Ui, lá vamos nós outra vez. Bem, sabe onde é a bomba de gasolina, ali no final da praia de Manguinhos?
– Bomba de quê?
– Mmmmrrrrrggggrrrrrrrrrrr….. Olhe, vamos fazer o seguinte. Um amigo vai ligar-lhe para dar o endereço. Certo?
– Como quiser…”
Após resolvido o problema, pude entender.
Não é paragem de camionetas, é posto de ônibus!
Não é bomba de gasolina, é posto de gasolina!
E é claro, o frigorífico. Em Portugal, é o que nós chamamos câmaras frigoríficas industriais
Como atleta da vela, pode-se dizer que você foi inspirado por Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e os outros grandes navegadores do Portugal?
Imagino que sim, ainda que inconscientemente. É difícil de perceber até que ponto, a nossa história passada, onde os velejadores lusos tiveram um papel central e extraordinário, nos inspira nos dias de hoje.
Talvez nos dê aquele alento, nos transmita uma mensagem de coragem através dos tempos, naqueles momentos em que duvidamos das nossas capacidades. Que forças terão aquelas figuras ímpares encontrado em si mesmas para se lançarem ao mar, rumo ao desconhecido, enfrentado tempestades?
Poderá haver uma réstia dessa vontade de ir mais além, que perdure no DNA do povo português. Gosto de acreditar que sim.
Como está a preparação de Portugal para os Jogos Olímpicos de Tóquio, agora adiados para 2021?
Como Presidente da Comissão de Atletas de Portugal – CAO, tenho seguido a par e passo toda a preparação dos atletas lusos, com vista à sua participação nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021. Vivemos momentos únicos e para os quais, era praticamente impossível haver uma prévia preparação. Assim, a chave foi a adaptação.
E nesse campo, os atletas foram e continuam a sê-lo, exemplares! Adaptaram-se rapidamente a uma situação de confinamento social e encontraram soluções verdadeiramente inspiradoras.
Inspiradoras entre pares, mas até para a sociedade em geral. Se gerir uma campanha Olímpica já requer uma enorme capacidade de autocontrole, de resiliência, imagine-se nesta situação!?
João Rodrigues, já como presidente da CAO, nos Jogos Olímpicos da Juventurde
Será um pouco como prender um tigre numa jaula! A CAO, sensível a estas questões, em estreita colaboração com o Comité Olímpico de Portugal, criou uma linha de apoio aos atletas, onde estes podem não só receber informações fidedignas, mas também receber apoio em diversos campos, como seja o nutricional, psicológico ou relacionados com a própria Missão.
Já conseguimos ver luz ao fundo do túnel e acreditamos que iremos conseguir ultrapassar os desafios que esta pandemia provocou, mesmo sabendo que há tantas incertezas pela frente. Vivermos dia a dia, certos de que ainda serão necessárias muitas adaptações.