Tóquio – “A gente que é sertanejo, da roça, do mato, do sítio, quando vê que conquistou o maior evento esportivo do planeta, lembra de onde veio. Eu ia montado a cavalo para a escola, o primeiro tênis que coloquei no pé foi pra vim pro esporte, com 27 anos, antes era botina. Hoje, estar em um evento desse, com o mundo vendo, com uma medalha que poucos atletas têm e muitos querem, é motivo de valorizar de onde vem. Meu café da manhã era quase mamar na teta da vaca. Hoje, graças a Deus, as coisas mudaram, mas eu continuo sendo sertanejo”. Esse é Fernando Rufino, o Cowboy de Aço, campeão da canoagem na classe VL2, com direito a melhor tempo da história dos Jogos Paralímpicos.
Cowboy de aço ou de ouro? “Cowboy de ouro? É verdade!”. A grande paixão dele é o rodeio. “Eu amo ser peão de boiadeiro. Meu avô foi campeão, meu pai foi peão e eu continuo esse legado. Corto minha veia e sai touro voando e cavalo corcoveando. A gente é ser humano, consegue se adaptar, mas queria ser um dos maiores cowboys do mundo. Não consegui, porque meu caminho foi desviado, mas consegui chegar a ser um dos melhores atletas do mundo do mesmo jeito, em outra modalidade.” Ele acrescenta: “Sou medalhista paralímpico, mas cruzei o rio pra banda de casa, sou peão e tenho orgulho disso. Um dia, orando em um rodeio, disse: ‘Deus, nada me tira de um rodeio’, mas acho que ele quis provar para mim e me tirou do rodeio pra colocar numa canoa. Por isso que o nome da minha canoa é Vaca Braba e o do meu barco é Burro Branco. Eu trouxe o meio sertanejo para dentro de mim, não abandonei.”
Para marcar a origem, fez questão de colocar na cabeça o chapéu assim que saiu da água após vencer a prova no Sea Forrest Waterway. Enquanto não vestiu, não sossegou. Com ele foi ao pódio, tirou apenas ao subir, deu todas as entrevistas e posou para inúmeras fotos. “Trouxe esse chapéu porque é da onde eu vim. Represento a classe dos boiadeiros, do povo sertanejo, classe do povo trabalhador no sol.” Ele aproveitou para fazer uma dedicatória da conquista. “Ofereço para as pessoas que passaram um ano difícil nessa pandemia, que perderam pessoas importantes na vida.”
Lista de acidentes
O acidente que cita foi um atropelamento por um ônibus há cerca de 15 anos. Com o ouro no peito, Fernando Rufino faz questão de lembrar de todos que estiveram com ele após o ocorrido. “Eu tenho muitos amigos, e não só quando eu ganho. Tenho de quando eu perco também, então eu falo que eu tenho amigo de verdade. Em primeiro lugar é a família, a base, que me colocou andando no mundo pela segunda vez. Quando, aos 21 anos, o ônibus passou por cima de mim e quebrou a minha coluna, me colocou numa cama, meu pai me colocou nos braços e fez eu andar de volta. Minha mãe, meu irmão, vó, minha família, minha cidade, meu povo, meus amigos me acolheram. Precisei de amigos e tive.”
Acidentes, aliás, são uma constante na vida de Rufino. Ele até se diverte ao contar. “Perdi o dedo no engenho de moer cana, caiu um serrote no meu olho quando eu era pequeno, e tudo em casa foi curado com fumo e urina. Não tinha muito passar a mão na cabeça. Eu fui do cru, e do cru eu cheguei à vitória, não tem muita alisação. Depois, montando em um boi, ele pisou na minha cabeça e quebrou meu maxilar. Bati numa árvore a 100km/h e quebrei uma perna, depois caiu um raio em mim. Na academia quebrei o nariz e a testa. Depois eu cai debaixo de um elevador o elevador caiu e quebrou a minha perna, depois eu parei no semáforo um carro bateu em mim e virou de ponta cabeça…”, disse em meio a gargalhadas de quem estava ao redor.
Atleta nato
Fernando Rufino se define como um atleta nato. E, como a grande maioria, não vê atalho para o sucesso. “É treinamento. Não tem sol, não tem chuva, não tem feriado. Não tem qualquer convite que tire o nosso foco. São anos de preparação. Esse aqui (Geovane Vieira, que estava ao lado), saímos da nossa casa lá dia 4 de janeiro. Ele viu a família dele em maio e vai ver só em setembro. É dedicação, você deixa o seu mundo para vivenciar o mundo do esporte. Quando percebi que conseguia ser um atleta, foi no rodeio. O rodeio me colocou no mundo. Quando eu fui ser peão, eu vestia a camisa, comia ovo frito pra ficar forte, não para ser bonito, até porque bonito eu não sou mesmo. Aqui no esporte eu durmo para me recuperar, me alimento pra ficar forte pra remar. Tento ser um bom amigo pra Deus me abençoar na água.”
Daqui para frente, garante que a medalha, na vida pessoal, não vai mudar nada. “Na profissional eu alcancei o pico mais alto, mas na pessoal sou o mesmo cara de antigamente. É o mesmo cowboy. Vou atrás de outra (medalha), sempre vou continuar no esporte. Tenho 36 anos e sou um cara sadio, estou com os exames de um cara de 24 anos, então eu consigo chegar a Paris. Mas depois eu quero cuidar da minha família, de mim, viver minha vida sertaneja, cuidar do meu pai, da minha mãe, vivenciar esse tempo junto com meus pais, porque eles merecem demais”, encerra.
Amigo do dia a dia
Geovane Vieira, citado por Rufino, conquistou a medalha de prata logo depois do cowboy. Ele moram juntos e deram um grande abraço após receberam as respectivas medalhas. “É incrível. Só de ver que nós na mesma coisa, convivendo juntos, conquistando medalhas aqui nos Jogos Paralímpicos é fantástico”, disse o segundo colocado na classe VL3. “Faz três anos que moramos na mesma casa, só eu e ele. Ele foi sempre me motivando, porque viu que eu estava abalado pela questão do meu pai. Ele dizia que eu tinha de treinar, pegar firme, e como sou uma categoria acima dele, é um apertando o outro, motiva. Eu querer ganhar dele, ele de mim, e isso fez eu crescer.”
A questão do pai, Valdecir Carneiro de Paula, foi o falecimento, ano passado. “Estava treinando em Ilha Comprida. Isso mexeu muito com o meu psicológico, porque eu deixei tudo para competir, ser um atleta de verdade, e ele veio a falecer. Então não curti muito com ele. Sei que, lá no céu, esteve aqui comigo na raia. Ele sempre falava que queria me ver em Tóquio. Quando eu morava em Apucarana, acordava todos os dias as quatro da manhã para chegar em Londrina, que é onde eu treino. E ele sempre ia comigo, porque ia pro trabalho. A gente pegava o ônibus junto. Ele sempre falava que queria me ver em uma Paralimpíada, sentia orgulho. Lá no céu deve estar feliz demais.”
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Quero o ouro
Geovane Vieira conta como foi quando cruzou a linha de chegada. “Fiquei olhando para o telão e vi que apareceu o Curtis (Curtis McGrath, vencedor da prova) e depois eu apareci, pensei: ‘não acredito, não acredito’. Todo mundo gritando. Passou um filme na minha cabeça e até agora não caiu a ficha dessa medalha, todo atleta paralímpico sonha em ter uma medalha paralímpica”, acrescentou. “Meu sonho é ser medalhista de ouro. Tenho apenas um ano e meio na canoa então tenho grandes chances. Hoje foi uma competição muito cerrada, então eu sei que se eu treinar mais, dar mais, eu vou conquistar.”