Tóquio – Isaquias Queiroz encontrou na Sea Forest Waterway o que buscou por cinco anos. Foi nas águas da raia montada nas proximidades da baía de Tóquio que o brasileiro teve um dia perfeito para finalmente colocar no peito a tão sonhada medalha de ouro dos Jogos Olímpicos. Não foi fácil, precisou seguir à risca duras lições passadas pelo ex-treinador Jesús Morlán, falecido em 2018 vítima de câncer, mas valeu a pena. O baiano de Ubaitaba sai da capital japonesa não apenas campeão olímpico, como também reconhecido pelos maiores rivais e em posição de se tornar daqui a três anos o maior atleta olímpico da história do Brasil.
“Tem um vídeo na internet que o Jesús fala ‘siga remando, não lhe dei permissão para parar’. E se ele não tivesse falado aquilo, eu tinha parado naquele dia. E hoje eu pude ganhar a medalha de ouro porque fez muita diferença um grito. Lógico que tem de respeitar o atleta, o corpo do atleta, mas o treinador está sempre ali para tirar o máximo. Ele quer ver o atleta com a medalha no peito. Foi muito grito que levei, muita bronca e graças a Deus posso mostrar que isso foi fundamental para eu chegar aqui hoje”, disse, esbanjando carisma, bom humor e, claro, alegria. “Eu tinha medo de não ganhar a medalha de ouro na Olimpíada. Acontece muito, o atleta fica segundo terceiro, e não queria isso para a minha carreira.”
Foi a quarta medalha de Isaquias Queiroz em Jogos Olímpicos. Ele tem outras duas pratas e um bronze conquistados na Rio-2016. Com isso, se conseguir mais duas em Paris-2024 supera os velejadores Robert Scheidt e Torben Grael, donos de cinco pódios cada, como o maior medalhista olímpico brasileiro. “Vou ser obrigado a ter que ir para Paris para brigar por mais duas. Objetivo aqui eram duas, porque a gente tinha esse pacto com o COB, com o Lauro, com Jesus Morlán, pra transformar em 10 medalhas dele. Ele não pode estar aqui, mas a gente veio com esse objetivo. Volto a repetir, não vou a Paris a passeio, vou pra fazer o que fiz aqui: brigar pelas medalhas e representar bem o país.” No Japão, Isaquias disputou também a C2 1000, ao lado de Jacky Godmann, e eles ficaram na quarta colocação.
Sonho de Jesús
Hoje Isaquias é treinado por um discípulo de Jesús Morlán, Lauro de Souza, que, com a medalha, sente-se realizado por completar o trabalho iniciado por quem considera um pai no campo profissional. “Eu tinha uma proximidade muito grande com o Jesús, morava com ele, estava com ele em todos os momentos e o dia que ele faleceu a gente se reuniu e prometeu que ia seguir remando. O Jesús sonhava pegar uma medalha em Tóquio, pelo menos um ouro, que faltou no Rio. E a gente tinha muito claro que ia buscar esse ouro. Eu sempre tive isso na minha cabeça. O maior medo era frustrar o Jesús, porque ele me ensinou tudo. Na parte profissional, foi um pai para mim. E eu tinha essa responsabilidade de mostrar que ele me escolheu corretamente.”
Isaquias Queiroz lembrou que Morlán sempre falava “‘solte a fera’. O Lauro sabe que essa frase é do Suso (apelido do ex-treinador), então ele não fala. Quem fala é minha esposa, que fez uma camisa, minha família também, com a frase. É muito marcante para mim. E também a frase ‘siga remando’, que ele sempre falava: ‘siga remando, siga remando, não pare de remar’. Treinamos durante cinco anos e o resultado está aqui. A dedicação, o trabalho que eu fiz, que o Lauro teve de fazer. O tempo que ele teve de me aturar, que não é fácil. Então isso aqui é muito gratificante.”
Lauro, o Pinda, acrescenta que aprendeu tudo o que sabe com o mentor nascido na Espanha. “Eu era muito observador, ia sempre na lancha com ele. Na reta final ele não estava tão presente porque estava enfrentando uma quimio e acabei ficando com o olho treinado, passei a enxergar detalhes que antes eu não enxergava. O grande diferencial foi a parte técnica. Quando ele me chamou para trabalhar com ele, resetei a minha cabeça, pensei ‘não sei nada, vou aprender tudo e acho que esse foi o grande diferencial.”
Rivais e amigos
Isaquias Queiroz explodiu para o mundo conquistando as três medalhas na Rio-2016. Na C1 1000 perdeu o ouro para um dos grandes nomes da modalidade, Sebastian Brendel. Bicampeão olímpico e quatro vezes campeão mundial, é mais do que um rival, é uma das inspirações de Isaquias. Tanto que ele deu o nome do alemão para seu filho. “O meu filho tem o nome de dois campeões, Sebastian, de Sebastian Brendel, e Queiroz, de Isaquias Queiroz dos Santos. Em 2012 eu nem pensava em ir para os Jogos Olímpicos e ele já era campeão. Em 2009, quando eu era cadete na seleção, ele já era campeão europeu. A gente vai se espelhando nesses caras e um dia, se tiver a chance, rema contra ele. Remei contra ele, já ganhei. Respeitando sempre. Ele não é qualquer atleta, é fora de série”, disse o brasileiro, um dia antes da final.
Brendel, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, não conseguiu chegar na finalíssima e encerrou a participação na 10ª colocação. Estava frustrado, mas se disse feliz pela consagração de Isaquias. “Fiquei muito feliz que ele ganhou a medalha de ouro, acho que ele ficou muito desapontado que não ganhou no C2. É um grande esportista. Nós nos respeitamos muito. Ele colocou meu nome no filho dele e eu desejo tudo de melhor para o filho dele.” “O Sebastian torceu por mim poque não tava competindo comigo. Disse que ficou feliz de eu ter ganhado. Encontrei com ele na Vila e disse que ia ganhar. É um atleta que é um rival meu, claro, mas eu tenho muita admiração por ele. Quando eu pesava em remar ele já estava ganhando. Eu cresci vendo ele remar, me inspirei nele.”
Outro rival de longa data de Isaquias Queiroz é Martin Fuska, o vice campeão nas quatro vezes em que Brendel levou o mundial, entre 2014 e 2018. Quando estava deixando o Sea Forest Waterway, o tcheco parou para cumprimentar o brasileiro com um forte abraço e as palavras: “you are the best”, ou “você é o melhor”. “A gente vem de rivalidade desde o mundial júnior de 2011, quando eu ganhei o C1 200 e ele ficou em terceiro. E hoje compete junto de novo. A gente tem uma amizade. Tem rivalidade, mas tem parceira, camaradagem”, conta Isaquias. “Eles sabiam que eu remo bem, desde 2019 eu evolui bastante. É gratificante ter esse reconhecimento. Eles sabiam do meu potencial.”
Ana Marcela, girafinha da sorte e Goku
Isaquias mostrou-se ser também cheio de mandingas. Chegou para a entrevista segurando uma girafa de pelúcia do filho Sebastian. “Meu amuleto da sorte, e tinha esquecido de trazer”, conta. Preocupado com as ‘forças obscuras’, mobilizou o pessoal que o assessora para trazer. “No dia 30 chegou aqui. Não pude levar no pódio, mas eu to carregando pra lá e pra cá”. Apesar de não conseguir levar o amuleto para o pódio, deu seu tom para a pomposa e formal cerimônia de premiação. Mandou um kamehameha pro mundo inteiro ver. “Eu tinha falado pro pessoal que se eu ganhasse a medalha de ouro ia fazer o kamehameha. A gente está no Japão, terra do Goku, do Dragon Ball”. Kamehameha é um ataque do famoso personagem de anime que Isaquias revelou ser fã quando era criança. “Eu sou Isaquias, não posso subir no pódio tranquilo.”
Sobre o rebento, só sorrisos. “Primeira Olimpíada dele podendo me ver, ele tava acordado lá. Aquilo é uma pimenta, não dorme cedo. Então para mim era muito especial poder ganhar a medalha de ouro aqui. Eu passo um sofrimento na água, mas na vida, fora da água, eles também passam a mesma coisa”. Ainda antes de atender os jornalistas, conversou com os familiares ao telefone “Tava falando com a minha esposa, chorando, ela chorando. Falei com a minha mãe também, ela nem assistiu à prova direito. Só os 100 metros finais, ‘ele tava na frente’. Ela tava orando, como no Rio de Janeiro. A minha irmã fazendo aniversário, pude dar essa medalha para ela de presente.”
Além da simpática girafinha, Isaquias também buscou um pouco de sorte na medalha da maratonista aquática Ana Marcela Cunha, campeã da prova de 10 quilômetros nos Jogos Olímpicos de Tóquio. “Pedi para ver a medalha dela. Eu assisti a prova e fiquei muito emocionado. E pedi para tocar na medalha para dar sorte. Mesma coisa o Ítalo Ferreira com a fala ‘diz amém que a medalha vem’. Até minha esposa mandou mensagem e falou ‘amor, fala amém que a medalha vem’. Fiquei feliz de ver os atletas brasileiros ganhado medalha e tinha de ganhar a minha.”
Cortinho de 25 pontos
Outro detalhe que não passou em branco na descontraída conversa de quase meia hora que teve com os jornalistas foi uma cicatriz recém fechada na mão direita do campeão olímpico. “Umas três, duas semanas antes da Olimpíada eu cortei a mão e tomei mais de 25 pontos. Na mão que faz a tração no remo, tava remando com ponto, medo de estourar. Mesmo assim, não tinha jeito. Eu treinei cinco anos e não ia ser um cortinho que vai me atrapalhar.”
Isaquias Queiroz também falou sobre a importância que seu ouro nos Jogos Olímpicos pode ter para as próximas gerações. “Para todas as crianças acreditarem no seu potencial. Eu ouvi quando era mais novo eu nunca ia ser um campeão. E hoje estou aqui com esse ouro. Então (a mensagem) é para todas as crianças se dedicarem ao esporte, se apaixonarem, porque o esporte é apaixonante. É doído, não vou mentir, dói mesmo, mas acho que muitas crianças vão se inspirar em mim. Na Bahia a gente é porreta, mas quero ver em outros estados criando atleta da canoagem”. Ele também dedicou a vitória para todos os brasileiros que perderam um ente querido vítima da covid-19. “Os brasileiros estavam torcendo muito, mesmo se não pegasse medalha. Eles tiraram o tempo para torcer. Nós sabemos que nosso país ainda sofre muito com a covid. A gente não está livre do vírus ainda.”
Férias e casamento
A pandemia, aliás, inviabiliza uma festa como poderia ser, com carreata e comemoração nas ruas de suas cidades referências na Bahia, estado onde nasceu. “A gente sabe o que estamos passando, vamos analisar direito. Nós, atletas, transmitimos uma inspiração. O momento não é esse, a gente viu como as coisas estão aqui, todo mundo de máscara, se cuidando. O momento é de festejar, mas com distanciamento”, diz. Nada, porém que tire sua vontade de voltar para a terra natal. “To imaginando chegar no aeroporto de Ilhéus, aquela estrada pra Ubaitaba, Itabuna que é a casa da minha esposa. Ir na praia em Itacaré. Tenho muito orgulho de onde eu saí, foi o Rio de Contas que me transformou no Isaquias. Se não tivesse rio lá eu não ia praticar canoagem. Talvez outro esporte, mas vai saber se ia dar certo ou não. Sou muito grato à cidade de Ubaitaba, que me apoia muito, à associação que me revelou, ao Gerson Lacerda, que foi o cara que levou a canoagem pra Bahia.”
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Chegando lá, deve ter um tempo para esquecer a canoagem um pouco. Seis meses, garantiu Lauro. Isaquias aposta que não passa de um. Seja um ou outro, serão momentos para curtir e também formalizar a família. “Eu tenho umas férias que vou pra Cancun, passear um pouco, sair da rotina do esporte e vou me casar. Não queria casar sem a medalha no peito”. O carinho pela medalha é tanto, que até achou uma boa ideia entrar com ela no dia de celebrar o matrimônio. Se não der certo, talvez não vá pendurada, mas cravada no peito. “Já falei com um amigo meu e acho que vamos meter uma tatoo aí. Dói, mas vai. Acho que no peito”, finaliza o Isaquias Queiroz, antes de se despedir em meio a alguns pingos de água que caíam do céu para terminar de lavar sua alma.