A reação de Mayra Aguiar aos primeiros dias da pandemia do novo coronavírus ilustra bem o tamanho da crise sanitária que o mundo está passando. Acostumada a encarar, e vencer, as maiores lutadoras de judô do mundo, além de enfrentar treinos e rotinas estafantes, sentiu-se impotente e até, porque não dizer, amedontrada diante dos acontecimentos.
Refeita, a bicampeã mundial já está de volta aos treinos focada na medalha de ouro que ainda não tem, mas sem fazer do objetivo uma obsessão. Está determinada a chegar forte na Olimpíada de Tóquio e ao mesmo tempo sente-se plena.
“Foi bem pesado. Não sei se foi para todo mundo, mas para mim parecia um pesadelo. Muita notícia toda hora, muita coisa pesada que a gente via na TV, muita gente morrendo. Meus pais também, eu preocupada para caramba. Quando a gente não pode controlar, fica muito ruim, a gente se sente pequeno, frágil”, disse a atleta, que está passando a quarentena sozinha em sua cidade natal, Porto Alegre, com a companhia eventual da irmã, Hellen Aguiar.
“Estou em casa, moro aqui do lado da Sogipa (clube que defende no Brasil). Meus pais não estão comigo, os dois são grupo de risco, então estão bem isoladinhos lá na praia. Minha irmã trabalha aqui perto. Ela é fisioterapeuta, então vem aqui as vezes, mas fica na casa dela também.”
Além do lado humano, o profissional também deixou Mayra Aguiar aflita. “Esse ano era super importante na carreira de todo atleta que tava pensando nas Olimpíadas. Eu tava muito bem preparada, já tinha treinado tudo o que tinha para treinar e de repente tudo parou. Foi o momento que eu mais senti, passei dias bem ruins. Não conseguia treinar direito. Por mais que eles (Sogipa) passassem (o treino) eu não conseguia, e tava agoniada. Daí a minha cabeça pirou, eu fiquei bem mal no começo”.
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Saída pela disciplina
Mas, como todo bom judoca, Mayra Aguiar apostou na disciplina para sair do pesadelo. “Chegou um momento que eu consegui organizar. Tive de reformular minha cabeça para ter uma rotina de treinamento, de alimentação, de horários. Acordar no horário certo, fazer tudo certinho e isso me ajudou. Agora, o momento que eu to passando está muito mais tranquilo. Eu consegui me reorganizar.”
Logo vieram os treinos em grupo, mesmo a distância. E atualmente já começaram a praticar na própria Sogipa. “Com os treinamentos que a gente tava fazendo, on line, vendo todo mundo, falando, treinando junto, melhorou muito. E agora, na semana passada, começaram na Sogipa. Com todas as exigências, quase sufocando de máscara, mas treinando”, explica, aliviada, mesmo que fazendo presencialmente apenas treinos físicos. “Nada de contato, isso ainda deve demorar para acontecer”.
A falta de treinos, de judô, aliás, é certamente a parte que mais se perde, na opinião de Mayra Aguiar. Curiosamente, porém, as lesões de outrora ajudam neste momento. “Já passei muito tempo sem judô por conta de lesão, tive quatro cirurgias e na última foram seis meses, e me saí muito bem. As duas vezes que eu fui campeã mundial foram voltando de lesão”, lembra. “Claro que a falta que eu sinto é enorme. De poder botar o quimono, de poder lutar mesmo. Quando dá muito, eu boto o quimono na minha irmã. Ela sabe um pouquinho, não se apavora, mas a bichinha sofre”, brinca.
Além da Hellen, Mayra Aguiar cita apoio que teve da Sogipa e da Confederação Brasileira de Judô. “Trouxe umas coisinhas (do clube), mas para a parte física. Na parte nutricional, falei com o pessoal da CBJ, tudo on line. Estão dando muita estrutura para a gente se manter”.
Mais dois ciclos
Toda essa mini “revolução” foi necessária para que ela seguisse garimpando focada na última grande vitória da carreira, a medalha de ouro olímpica. Depois de conquistar a dos Jogos Pan-Americanos em Lima, no ano passado, falta “apenas” essa. Tóquio pode ser a penúltima chance. “Minha ideia é fazer dois ciclos (olímpicos). Esse e mais o próximo, que seria Paris”.
Não que seja uma obsessão, algo que se não vier vai deixá-la com uma lacuna no coração de atleta. “Eu li um livro de organização, organizei toda a minha casa e eu deixei para o final as minhas fotos. Tinha uma ‘porrada’, então foi uma nostalgia de tudo o que eu vivi, de tudo o que eu passei. Cara, que delícia tudo o que eu fiz. E deu mais a sensação de tudo valeu a pena. Tudo o que eu passei, que coisa bem boa”.
Ignorância seria achar que uma atleta como Mayra Aguiar confundisse plenitude com comodidade. “Eu sei o quanto eu quero. A medalha de ouro olímpica é um objetivo na minha carreira, eu tenho objetivos, mas não é uma pressão que me corrói, é uma coisa que me motiva e eu fico mais forte, mais leve”.
Perdrinhas e pedronas
Mayra Aguiar já ficou perto do ouro no judô das Olimpíadas. Fez duas semifinais e tem dois bronzes em três edições. Na primeira, em Pequim, chegou com apenas 16 anos. “Fiz 17 lá, fizeram até uma festinha de aniversário, mas não podia comer nada”. Quatro anos mais tarde, em Londres, caiu para Kayla Harrison, dos EUA, na disputa pela decisão. Na Rio 2016 a algoz foi a francesa Audrey Tcheumeo. Curiosamente, as três estiveram nos dois pódios, com a atleta estadunidense no topo de ambos.
Harrison, atual bicampeã olímpica, se aposentou do judô e a rival francesa está atrás de duas outras compatriotas na corrida interna delas. Nada que pareça um alívio para Mayra. “Tem muitas (adversárias fortes). As francesas, lógico, tem até quatro muito fortes. As japonesas, tem duas holandesas, duas alemãs muito fortes”, diz, sem, no entanto, achar que as armadilhas param por aí. “Tem umas pedrinhas preciosas que aparecem, que não batem com o teu jogo, então tem de estar preparada”.
+ CBJ evita prognósticos, mas quer ao menos um pódio em Tóquio
Certamente Mayra Aguiar estara pronta para disputar a medalha de ouro no judô das Olimpíadas, mesmo passando pelo “pesadelo” da pandemia, dificuldades de adaptação de treinos e readequações. Em Tóquio, estará lá, gigante como sempre, pronta para colocar em sua extensa coleção de fotos, mais uma grande lembrança, talvez a mais dourada delas.