Sexo frágil? Nada disso por aqui. Aliás, que fique claro: “sexo frágil” nunca existiu. É verdade que, desde sempre, as mulheres enfrentam preconceitos diariamente na rua, no trabalho e até mesmo dentro de casa.
No jornalismo esportivo não seria diferente. É impossível separar o machismo no Brasil com a falta de mulheres no meio do esporte – seja como atleta, como gestora, como jornalista. Desde crianças somos ensinadas que o ambiente esportivo é um lugar masculino.
Eu mesma, jornalista que vos fala, passei por isso. Com sete ou oito anos, eu só andava com meninos e queria jogar bola depois da aula. Minha mãe, preocupada, me levou ao psicólogo porque aquilo não era “normal”. Hoje em dia, ela fala: é minha filha, nada mudou. Você continua com seus amigos e só quer saber de esporte.
E essa, infelizmente, é só uma das milhões de história pelo Brasil afora que mostram machismo enraizado na nossa sociedade.
A pergunta que temos que fazer é: por que isso acontece? Não é uma questão de DNA, a gente sabe. Não existe um gene no cromossomo Y que faça com que as mulheres gostem menos de esporte. A resposta está na nossa cultura e criação. O machismo no esporte está totalmente interligado com a ideologia de gênero.
Fomos criados com a ideia de que meninos jogam bola e vão para o estádio com o pai. As meninas ficam em casa ajudando a mãe e vendo novela. Bola para os meninos, boneca para as meninas. Com isso, fica fácil entender por que existem muito mais homens nos campos e quadras, nas arquibancadas, nas cabines, nas zonas mistas, nos estúdios e na chefia.
Historicamente, a quantidade de mulheres nas redações e programas esportivos é muito pequena em relação a de homens. Hoje, a maioria das jornalistas ocupa o cargo de repórter e raras são as comentaristas ou as que participam de mesas-redondas.
De acordo com a Unesco, só 4% da imprensa especializada fala sobre o esporte feminino e apenas 12% dos programas esportivos são apresentados por mulheres.
Em 2016, a Gênero e Número avaliou colunas esportivas dos dez jornais de maior circulação dos estados brasileiros e dos líderes de audiência. O resultado? Menos de 10% das colunas são assinadas por mulheres.
Outro levantamento, feito pela Universidade de Cambridge, em 2016, mostra os termos em inglês mais usadas para definir atletas. Os termos associados aos atletas homens eram forte, grande, rápido, vencer, dominar e derrotar. Já para as mulheres… Casada, envelhecida, solteira, grávida, competir e participar.
O Olimpíada Todo Dia entrevistou três jornalistas para falar sobre o assunto: Renata Mendonça, uma das fundadoras do Dibradoras, e Denise Mirás e Heleni Felippe, ambas com passagens pelo Jornal da Tarde e Estadão.
Onde tudo começou
Denise e Heleni têm mais de 40 anos de amizade e jornalismo, além de várias Olimpíadas no currículo. A dupla explica como o esporte olímpico abriu as portas para as mulheres nessa caminhada.
Denise caiu de paraquedas no esporte, mas dedicou sua carreira a ele. A jornalista era revisora do Grupo Estadão quando teve a oportunidade de subir, temporariamente, para o Jornal da Tarde.
A única exigência do chefe foi “uma mulher que não chore”, uma fala que mostra claramente o machismo enraizado da época. A jovem, que nunca se deixou intimidar, aceitou o desafio. O trabalho de Denise foi tão reconhecido que 15 dias viraram 26 anos.
“No Jornal da Tarde eram mais ou menos 20 homens e eu era a única mulher. Dei sorte de trabalhar com pessoas muito bacanas, pessoas mais abertas. Onde você mostrava serviço e se fazia respeitar”, conta.
Mas não era assim no futebol. O futebol, claro, era coisa de homem. “Tinham os setoristas dos clubes e você, mulher, chega pra trabalhar e fica com o resto – e o resto, no caso, eram os olímpicos”, explica.
Para Heleni, o esporte também não foi uma escolha, e sim uma consequência. Junto com Denise, a dupla ia aos jogos de vôlei, até que apareceu a oportunidade para trabalhar em um dos times. Sem pensar duas vezes, a jornalista aceitou.
“Na cobertura de futebol a gente com certeza ficava com o resto. Agora nos olímpicos, como começou a ter espaço, a gente se impunha. Mas sim, a gente ficou com os olímpicos porque era o que ninguém queria, homem sempre queria fazer futebol”, conta Heleni.
O que os homens não sabiam era que o “resto” ia ganhar espaço e virar a oportunidade que as mulheres precisavam para mostrar seu trabalho.
“Tive chefes imbecis, que quando era sobre olímpico pensavam ‘o que essa mulher está querendo, vir aqui tomar meu tempo, falar de alguma coisa que não futebol’. Primeiro que eles não conheciam outro esporte, então na insegurança é melhor não tratar bem o repórter ou nem ouvir muito. Segundo porque vai de personalidade, de caráter. Eu pessoalmente nunca me intimidei”, acrescenta Heleni.
Claro que dos anos 80 para cá, muitas coisas mudaram. Uma prova viva disso é a jornalista Renata Mendonça, uma das fundadoras do Dibradoras. Se Denise e Heleni acabaram sem querer querendo no esporte, Renata sempre sonhou e teve a liberdade de escolher a área.
“Sempre fui apaixonada por esporte e queria trabalhar com isso desde que entrei na faculdade. Meu primeiro contato com o jornalismo esportivo já foi no primeiro semestre, trabalhando na rádio universitária da Unesp, em Bauru. Depois, transferi minha faculdade para são Paulo justamente porque queria poder atuar com grandes veículos na capital”, conta Renata.
Desistir jamais
Ser mulher em qualquer ambiente machista é passar por situações constrangedores e desconfortáveis. Assédio, mansplaining e falta de credibilidade. Se dentro das redações já é difícil, fora é ainda mais.
Denise conta que, uma vez, o setorista do São Paulo da época estava de folga e por isso foi enviada para cobrir um treino especial. Ela era a única mulher presente. O técnico na época era Carlos Alberto Silva.
Toda vez que fazia uma pergunta, o treinador ignorava e virava a cara para respondia outras pessoas, no caso, outros homens. Até que Francisco Domingues, o setorista que apareceu de surpresa, defendeu a colega.
“Eu fiquei emputecida, aí o Chico falou: escuta, ela é minha colega, trabalha comigo, o que você está fazendo é um absurdo. Você faça o favor de responder o que ela está te perguntando”, relembra. “Mas essa era uma mentalidade da equipe do Jornal da Tarde”.
Já Heleni mostra que, diferente do futebol, o tratamento no meio olímpico sempre foi diferente.
“Fiz muita seleção masculina de basquete, vôlei, e nunca enfrentei nenhum preconceito por ser mulher. Fiz muito atletismo masculino e sempre fui muito bem tratada. Viajei para o Japão em 82, única mulher com o time olímpico de vôlei e nunca passei por situações do tipo”.
Se o lugar da mulher no jornalismo esportivo mudou de 40 anos para cá, a questão do assédio – moral e sexual – ainda tem muito a evoluir.
Renata vem de uma geração diferente de Heleni e Denise e, ainda assim, já passou por todas essas situações.
“Já ouvi de um chefe que ele não confiava em mim para me mandar em pautas em treinos de clube ou em jogos porque achava que eu não ia saber o que perguntar para os jogadores, que eu não ia saber quem era quem. Um comentário que não foi feito baseado no meu rendimento no trabalho porque eu rendia muito bem, era puramente baseado por eu ser mulher”, relembra.
“Já sofri assédio em situação de estágio numa rádio, de o apresentador tocar na na minha mão, no meu cabelo… De me colocar numa situação complicada. E fora que é o tempo todo piada machista dentro da redação, aquela zoeira de pergunta o que é impedimento só pelo prazer da zoeira, ou aquela coisa de sempre duvidarem da sua informação”, completa.
Para Mendonça, hoje em dia as mulheres pararam de aceitar a realidade imposta a elas. “Acho que o que mudou foi a posição das mulheres. Elas perceberam que elas podem sim falar, questionar e não aceitar isso. A união das mulheres fez com que muita gente percebesse que isso era um problema real”.
Feminismo intimida
Do mesmo jeito que é impossível não associar o machismo com a falta de mulheres no esporte, é impossível não associar o movimento feminista com cada conquista.
“A onda do feminismo cresceu muito em 2015 e a gente foi na onda dela. Só que na verdade não se falava de feminismo no esporte ainda, se falava muito pouco da importância de mulheres no esporte, o quanto isso era importante para o feminismo também. Não se entendia, na luta feminista, a importância de se falar disso. Então foi muito legal despertar o olhar de muitas mulheres quando começamos a falar sobre mulheres no esporte”, conta Renata.
E o feminismo incomoda. O feminismo intimida quem não entende. Ao contrário do que muitos homens pensam, as mulheres não querem roubar o espaço de ninguém, elas só querem fazer parte.
“Acho que os homens se sentem intimidados. Não à toa, quando começou o movimento #DeixaElaTrabalhar, as meninas que eu conheço que trabalhavam em redação falavam como o comportamento dos caras mudou. Se sentem intimidados porque sempre foi um ambiente muito confortável para eles, onde eles podiam fazer e falar tudo que eles queriam e acho que eles veem uma coisa de ‘vão roubar meu espaço’. Tem muita mulher que é competente e nunca teve chance, ao passo que já vi muito homem incompetente que já teve muita chance”, continua.
“E acho que o fato de os homens dominarem os cargos de decisão dificulta ainda mais porque o fato de eles comandarem os cargos de tomada de decisão faz com que eles façam perdurar essa diferença”, completa.
Denise conta que antigamente os homens não se importavam com essa questão. “Eles nem ligavam, nem escutavam o que a gente falava. Agora eles se preocupam. Mesmo que o cara tenha algum tipo de preconceito, ele se segura. É comprovado que a mulher estuda mais, que é mais detalhista. Talvez por ter que provar sempre que ela sabe das coisas. Isso intimida mesmo, assusta”, explica.
Chegaram para ficar
A luta começou ainda nos anos 70 com jornalistas como Zuleide Ranieri, Kitty Balieiro, Germana Garilli, Regiani Ritter, Claudete Troiano e Marilene Dabus, pioneiras no esporte.
Em 1997, Luciana Mariano, hoje na ESPN, fez história como primeira narradora de futebol da televisão brasileira, pela Bandeirantes, no Torneio Primavera. Em 2016, Glenda Kozlowskifoi a primeira mulher a narrar os Jogos Olímpicos, na TV Globo.
Na Copa do Mundo da Rússia, em 2018, a Fox Sports fez uma transmissão 100% feminina e, pela primeira vez, um jogo da seleção brasileira foi narrado por uma mulher. No Brasil e Suíça, Isabelly Morais foi a protagonista dessa história. Nos comentários, completavam a equipe a experiente Vanessa Riche e a goleira da seleção feminina Bárbara.
Ana Thaís Matos, do SporTV, também entrou para a história do jornalismo esportivo se tornando a primeira mulher a comentar jogos do futebol masculino na TV Globo.
“É muito gostoso de ver [esse crescimento]. Você vê cada vez recheando mais com diversidade. Eu fico super feliz e vejo essa multiplicidade de pensamento. Aí você consegue sair daquela caixinha que era, você consegue ver mais aberto. Fico imaginando que a audiência tem o mesmo pensamento”, finaliza Denise, que vai para a sua nona Olimpíada em 2020.
Renata também vai com as Dibradoras para os Jogos de Tóquio, mas, ao contrário de Denise e Heleni, esse é só o começo da jornalista na cobertura olímpica.
“A gente não vai para a Olimpíada porque tem dinheiro sobrando. Vamos porque a gente entende que pelo nosso papel a gente precisa estar nesses eventos, para trazer o protagonismo da mulher e dar a ela a visibilidade que ela merece. Então assim como na Copa do Mundo feminina, a gente disse que ia estar, compramos nossas passagens e fomos”, diz Renata.
“Na Olimpíada é a mesma coisa, temos o mesmo plano. Conseguimos credencial com o COB e vamos dar um jeito de bancar nossa viagem para lá. Nosso plano é ter pelo menos 2 pessoas: uma com futebol e outra com as outras modalidades, mas sempre trazendo o protagonismo para a mulher, cobrindo modalidades femininas, histórias menos conhecidas, menos acompanhadas e sempre com esse protagonismo da mulher”.
Além da presença da imprensa feminina em peso, os Jogos deste ano também podem contar com o maior número de mulheres na delegação até hoje. “Acho muito gostoso fazer esporte feminino, me dá bastante prazer. Eu estou comemorando esse aumento da participação das meninas, vai ser muito gratificante ter mais mulheres na delegação brasileira”, finaliza Heleni, que irá para sua sexta Olimpíada.
E esse é só o começo. Ainda tem muita luta pela frente, mas agora que elas chegaram, chegaram para ficar.