O verdadeiro congelamento que esporte mundial sofreu com a pandemia do coronavírus ainda está sendo assimilado por atletas, dirigentes e entidades. O adiamento da Olimpíada de Tóquio por um ano, fato que ocorreu pela primeira vez na história dos Jogos, foi talvez o mais duro golpe, porém não o único. Sem competições à vista e proibidos de treinar pelas recomendações de isolamento social, como forma de impedir a propagação dos casos da Covid-19, os atletas se tornaram o maior objeto de preocupação das entidades esportivas.
Assim também tem sido dentro do COB (Comitê Olímpico do Brasil), que tem tratado deste tema em reuniões (virtuais, é bom que se diga) diárias entre seus dirigentes. “O cenário tomou uma complexidade mundial, todos estão enfrentando problemas e com outras prioridades no momento. O principal é a preservação da vida humana e a forma de manter o emocional o mais equilibrado dentro do possível”, afirma Jorge Bichara, diretor de esportes do COB.
Em entrevista exclusiva ao Olimpíada Todo Dia, Bichara conta como que a entidade tem trabalhado para preservar a saúde mental dos atletas já classificados para os Jogos e também os que ainda vão buscar suas vagas para Tóquio-2020, quando a vida voltar ao normal. O diretor de esportes do COB também comenta sobre o que já se sabe sobre a reorganização do calendário esportivo, que ficou paralisado e não tem ideia de quando retornará. Confira a entrevista abaixo:
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OTD – Estamos vivendo um cenário inédito, algo que a nossa geração nunca viveu. Como o COB está encarando este momento?
Jorge Bichara – Todos estamos vendo este quadro com muita perplexidade e preocupação, além de extrema atenção, no sentido de que a gente possa buscar com calma e serenidade e ter capacidade para analisar tudo o que está acontecendo. Com isso, buscar as melhores soluções. Temos conversado muito a respeito de como o cenário esportivo mundial está se reorganizando, falamos sobre como será o cenário esportivo nacional em curto, médio e longo prazo, no sentido de que possamos estabelecer as nossas ações. Seja na nossa participação dentro do sistema esportivo nacional, seja na representação do Brasil nos Jogos Olímpicos e nos eventos multiesportivos dentro do ciclo.
Neste momento, nossas ações estão direcionadas no sentido de buscar a manutenção da saúde dos funcionários, atletas, treinadores e orientar como os atletas precisam se manter em atividade neste momento. Isso no aspecto mais físico da nossa possibilidade de atuação, trabalhando direto com as confederações, fornecendo dados para que permitam que eles se organizem diante deste cenário administrativo que vem pela frente. Além disso, temos falando a respeito de repasse de recursos, prestações de contas, na aplicação dos recursos das loterias.
“Estamos enfrentando uma guerra, só que pela saúde, contra um inimigo invisível que assola a todos. “
Que cenários vocês já conseguiram traçar para o futuro, se é que isso é possível?
É um cenário que nunca vivemos, talvez nossos avós ou bisavós tenham vivido isso na época das Grandes Guerras. Talvez seja esta a mentalidade que temos que ter. Estamos enfrentando uma guerra, só que pela saúde, contra um inimigo invisível que assola a todos. Ao mesmo tempo, será uma guerra para restabelecer a nossa atividade-fim, que é a organização do sistema esportivo olímpico nacional. Nossas reuniões têm sido diárias, no sentido de avaliar o que temos de situações de interação rápida, necessidade de intervenção imediata, até situações que vão prevendo retornos gradativos ao trabalho, ou situações onde buscamos junto às entidades internacionais informações sobre um possível calendário.
Até por isso, nos ajudou muito a definição do adiamento dos Jogos e da imediata marcação da nova data. Foi uma situação que de início se mostrou um pouco lenta, mas entendo que era muito difícil, em virtude de complexidade enorme de relações, contratos, relações governamentais que já estavam estabelecidas. A própria pandemia se espalhou em ondas pelo mundo, então países eram afetados em diferentes momentos, fazendo com que as interpretações do alcance dos danos fossem se relativizando em cada local. Isso fez com que as medidas fossem tomadas não da maneira instantânea mas de forma progressiva de um local para outro. Os nossos planos para a Olimpíada estão sendo refeitos, entrando em contato com fornecedores, centros de treinamento, enfim, com todos os envolvidos na nossa complexa operação de participação nos Jogos.
Fora esta questão logística, como vocês estão trabalhando o lado psicológico dos atletas?
Este é o ponto principal dos efeitos mais incontroláveis deste momento que estamos passando. Todas as questões que envolvem organização logística, acomodação, transporte, alimentação, são ações extremamente significativas para nós, mas são ações de cunho comercial e estrutural. Estas relações se estabelecem e você tenta mitigar os danos, buscando não gerar prejuízos.
“Decisões de vida são tomadas entre os ciclos olímpicos. E você estender este ciclo por mais um ano, impacta em novos planos, não apenas sobre periodização do treinamento, mas em relação à sua vida pessoal”
Mas as questões no impacto emocional têm efeitos bem diferentes em relação ao nosso público-alvo, sejam atletas, treinadores, dirigentes. Todos nos organizamos mentalmente para um processo que envolve quatro, oito ou 12 anos de preparação, onde você tem a data à sua frente e organiza toda a sua vida, trabalho, esforço e expectativa no sentido de buscar seu melhor rendimento dentro daqueles 17 dias. Você se vê diante de um cenário inédito, que ninguém imaginaria três meses atrás.
Este seria o maior desafio nestes tempos?
Com certeza. Reorganizar-se emocionalmente para uma situação de estresse que iria viver em 120 dias e agora não mais, é um desafio enorme para todos. Seja já classificado para os Jogos, em situação próxima de classificação ou num cenário incerto com tudo o que envolve o cenário esportivo mundial e especialmente o brasileiro. Pois vivemos incertezas diárias em relação à estrutura, ao prosseguimento de projetos, ao nosso próprio sistema. É uma situação muito difícil, que envolve a todos. Decisões de vida são tomadas entre os ciclos olímpicos. E você estender este ciclo por mais um ano, impacta em novos planos, não apenas em relação à periodização do treinamento, mas em relação à sua vida pessoal. Reorganizar sua vida é um desafio para todos.
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Quais informações das Federações Internacionais em relação à reorganização do calendário?
Esse contato tem acontecido como COI. Temos feito reuniões virtuais a cada 15 dias com a Panam Sports e a Odesur e o COI, onde eles nos dão atualizações em relação às federações internacionais. E uma das coisas mais importantes é trabalhar com o máximo de informações oficiais, de uma maneira organizada. Então, buscamos sempre ter pontos de contato com estes organismos internacionais, assim conseguimos receber informações mais realistas sobre o que está acontecendo.
O que estas entidades já passaram para COB ?
Bem, já se sabe que está ocorrendo uma revisão dos processos de classificação olímpica para pouco mais de 40% das vagas em aberto. A proposta de definição é até o final do mês de abril. Já foi definido ainda que vagas já conquistadas por atletas e equipes estão garantidas e ainda existe um percentual grande em discussão. Agora, se este processo vai levar em consideração uma redistribuição de vagas por classificações em campeonatos anteriores, por rankings mundiais, por novas competições, isso ainda é um quebra-cabeça que as federações internacionais estão discutindo neste momento. E ainda temos que buscar novas sedes para realizar eventos. Qual país neste momento pode te dar uma garantia estrutural e financeira que vai realizar um evento no ano que vem ou no final deste ano? É um desafio grande para estas entidades buscarem estas soluções a curto prazo.
O COB deu algum tipo de sugestão para este processo?
Fomos consultados pelo COI sobre o que seria melhor para este processo qualificatório e apontamos que a nossa proposta era a tentativa de se reproduzir ao máximo o modelo que já se existia. Se fosse por obtenção de índice, posicionamento em campeonatos mundiais ou eventos qualificatórios, mantendo a mesma quantidade de eventos, pontuação em ranking mundial. Assim seria o mais fácil para adaptar as estratégias de classificação em virtude de os países já terem estudado a melhor forma de buscar estas vagas.
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“Qual país neste momento pode te dar uma garantia estrutural e financeira que vai realizar um evento no ano que vem ou no final deste ano?”
Já temos informações de datas de eventos. O atletismo fará o seu Mundial em 2022, mas as estratégias das federações internacionais mudam em relação ao calendário que você tem. Já sabemos que a natação quer manter o seu Mundial em 2021, mesmo concorrendo com a Olimpíada. Já ouvi também que a Federação de judô teria interesse em antecipar um Mundial do ano que vem para o final deste ano, até como forma de ter uma grande competição em 2020. Isso implicaria em mudanças até em um processo de qualificação olímpica, pela pontuação que um campeonato mundial tem no ranking. São três modalidades muito importantes com olhares diferentes sobre qual o melhor momento para fazer o seu Mundial. Isso é a realidade de cada uma e temos que entender.
Como um país pode ter certeza hoje de que em dezembro de 2020 irá conseguir realizar um Mundial?
Mesmo não pensando de uma forma alarmista, é provável que a gente tenha ondas de novas pequenas pandemias, a partir do momento em que consiga controlar a maior delas. É possível que de tempos em tempos, se volte a uma situação de algum risco de contaminação. Talvez já tenha vacina, ou uma população mais preparada, uma estrutura interna dos países mais organizada, de forma que a onda seja mais achatada. Certamente são situações impactante. A questão de você organizar um evento sai da esfera das entidades esportivas. Você tem efeitos na saúde pública de um país, de uma cidade, onde você abre as fronteiras para uma diversidade de pessoas, que reagem de maneiras diferentes à contaminação. É uma decisão difícil recomeçar o calendário internacional com tão pouco tempo e tanto risco.
O quanto isso irá impactar nos processos de classificação para a Olimpíada?
Será um grande impacto. Por isso, as federações internacionais têm que avaliar estes processos de qualificação analisando vários cenários. Um cenário onde se possa restabelecer um modelo já apresentado, obviamente com suas adequações, mas outros onde isso não será possível. Você terá que definir outros processos de vagas, seja por ranking, por convite, realmente não sei como será. Obviamente que a competição é o melhor processo, com a disputa esportiva direta. Mas diante de um cenário tão diferente que estamos vivendo, temos que buscar o que seja mais justo.
Chegou-se a sugerir a utilização de resultados em eventos continentais, como os Jogos Pan-Americanos?
Ouvi algo sobre isso lá na Panam Sports, mas era uma situação muito embrionária. Já se discutiu usar resultados de competições anteriores, mas seriam a nível mundial, não continental. Não descarto que isso venha a acontecer. Em uma ordem de seleção de eventos, a busca será por competições de nível mundial. Assim, este processo seria mais equilibrado no sentido de te ruma representatividade mais significativa dos melhores atletas de cada país dentro do evento.
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“Talvez a gente retome a um cenário das décadas de 80 ou 90, onde o intercâmbio era bem menor e a possibilidade de confrontos era mais limitada”
Esta situação já enterra qualquer previsão que alguém pudesse fazer sobre quadro de medalhas, não acha?
Sim, claro, vamos partir do zero. Sinceramente, neste momento não conseguimos nem pensar nisso. É um cenário tão diferente que se apresenta, com tanto tempo entre a última avaliação que tivemos e a próxima. Há uma possibilidade de ser um ano morto em relação a resultados esportivos. Haverá todo um processo de retreinamento que tem que ser iniciado. Talvez a gente retorne a períodos onde o intercâmbio entre países era muito pequeno. Não tinha tanto envolvimento comercial e diversidade de eventos no mundo.
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Talvez em um primeiro ano, a gente tenha que retornar a este momento, pela dificuldade e insegurança no trânsito de pessoas entre as nações. Talvez a gente retome a um cenário das décadas de 80 ou 90, onde o intercâmbio era bem menor e a possibilidade de confrontos era mais limitada. Vamos entender que tudo possa ser restabelecido no início do ano que vem e o tempo de seis meses permita que possamos chegar aos Jogos com dados mais claros em relação ao nosso potencial de resultados.
Vocês sabem se a China parou de treinar?
A China é muito grande, né? (risos). Em Wuhan, onde começou a pandemia, certamente parou. Mas o país tem dimensões imensas e certamente você tem locais onde o efeito não chegou. E tem também uma informação muito truncada. Dizem que não chegou em Pequim. Será isso mesmo? Estranho entender que isso não aconteceu.
Além disso, vamos recebendo informações sobre como cada um está se organizando. Soubemos que a equipe russa de ginástica estava trancada dentro de um centro de treinamento, com toda a estrutura necessária para manter a qualidade de sua preparação, por exemplo. Também recebemos informações de que centros de treinamento na Alemanha continuavam em funcionamento, até mesmo alguns centros dentro da Itália, um dos países mais afetados pela pandemia. Alguns atletas divulgaram em suas redes sociais. Obviamente teriam problemas em relação à sua circulação social, mas conseguiram manter uma qualidade alta de treino. Acho que a China manteve uma qualidade de treinamento bem significativa, pela sua extensão territorial e a forma como a vida é organizada no país.