No programa oficial paralímpico, o judô é disputado apenas por deficientes visuais, não incluindo outros tipos de deficiência, como a intelectual. Nem por isso, porém, quer dizer que elas não existam. Muito pelo contrário. O judô para deficientes intelectuais, chamado de judô DI, é um dos segmentos que mais cresce no Brasil e no mundo, apesar da pouca divulgação e do pouco apoio. Você provavelmente não sabe, mas o Brasil tem um judoca campeão do mundo no judô DI. É o João.
João Vitor Silva Ferreira tem 23 anos, é autista e nasceu com a Síndrome do X Frágil. Ele é, porém, muito mais que um diagnóstico. É um exemplo. Ao lado do pai Giovani Ferreira e da mãe Adriana, ele luta pela inclusão no esporte, mais especificamente, no judô. Juntos, eles buscam legitimação para uma categoria que ainda não é oficial. E no mês da Conscientização Mundial do Autismo, o Olimpíada Todo Dia conta essa história de superação e luta por espaço e reconhecimento.
+Abril Azul: entendendo o autismo no esporte de alto rendimento
João Vitor nasceu em Timbó (SC), em uma família de judocas. O pai, Giovani, é pedagogo e faixa-preta no judô há 33 anos. A infância de João, porém, não foi fácil. Com apenas dois meses de idade, ele começou a ter convulsões e, à medida em que foi crescendo, os pais perceberam que ele era diferente. Consultaram vários médicos especialistas e nenhuma conclusão.
Infância difícil
Aos seis anos, ainda sem falar, João estreou mais uma geração da família no judô. Começou a verbalizar somente com oito anos e tinha dificuldade na escola, além do bullying que sofria. O diagnóstico conclusivo, porém, veio apenas aos 11 anos.
“Foi uma infância bem difícil. Imagina isso há 23 anos atrás. Se hoje, ainda há pouca informação sobre autismo, naquela época então…”, contou o pai, Giovani, ao Olimpíada Todo Dia. “Nós ainda não tínhamos um diagnóstico fechado. Com 11 anos, levamos ele a um especialista genético em Curitiba e foi quando descobrimos que ele tinha Autismo e Síndrome do X Frágil. E foi aí que a gente começou a lidar com isso de maneira mais direta, porque quando você não conhece, não sabe com o que está lidando. Então várias atitudes ou falta de atitudes que ele tinha e que a gente não entendia, passamos a entender”.
O autismo já havia mudado a vida da família Ferreira. Mas a união dele com o esporte tornaria tudo ainda mais especial. João nunca se afastou do judô para deficientes intelectuais e com 12 anos competiu pela primeira vez, quando seu professor de Educação Física o convidou para participar do Parajesc (os Jogos Abertos Júnior de Santa Catarina). Ali, tudo mudou. Para João e também para Giovani.
Ponto de virada
“Eu cresci em um ambiente muito competitivo, então montei uma planilha, analisei os outros meninos, essas coisas. Logo na primeira prova, o João ganhou de um menino que sempre era campeão, e quando perdeu, ele para um canto e ficou amuado. O João foi lá, fez um carinho, conversou com ele, enquanto eu fui para a arquibancada. Aí o João veio até mim e disse: ‘pai, a próxima eu vou perder’. Eu, com meu instinto competitivo fiquei sem entender nada e perguntei o porquê. E ele respondeu: ‘porque eu ganhei a outra e ele ficou em segundo. Agora ele ganha e eu fico em segundo’. A gente aprende muito nesse segmento. A questão da competição, do ganhar, não é o principal. Não é isso que faz a diferença. Foi ali que a minha ficha caiu e eu comecei a me desconstruir”.
Para João, a nova experiência significou o primeiro passo na carreira como judoca. Depois disso, foi ultrapassando fronteiras: começou a disputar campeonatos estaduais de judô para deficientes intelectuais , depois participou de torneios fora de Santa Catarina, até que veio o convite para competir no exterior.
Em 2015, a família Ferreira levantou dinheiro e foi com João para uma competição na Itália. Resultado: João campeão. Na sequência, mais um torneio internacional, desta vez na Holanda. Resultado: João campeão, novamente. Dois anos depois, porém, o catarinense não seria “somente” campeão europeu. Seria campeão mundial.
Feito histórico
Em 2017, foi realizado o primeiro Campeonato Mundial de Judô Para Deficientes Intelectuais chancelado pela Federação Internacional de Judô (FIJ). A competição aconteceu em Colônia (ALE) e contou com 110 atletas de 13 países diferentes. João enfrentou seis adversários e venceu todos por ippon, se consagrando como o primeiro campeão mundial de judô DI.
A competição foi um marco histórico e o pontapé inicial de algo muito maior. Uma comitiva de japoneses foi ao Mundial entrevistar pessoas e colher informações sobre o judô para deficiência intelectual. Depois disso, um grupo da Holanda, onde o judô DI é mais desenvolvido, passou algumas semanas no Japão, também dando informações para eles sobre o esporte.
“ A gente ficou bem feliz, porque se o Japão, que é o berço do judô, coloca a mão nisso, as coisas vão mudar. Existe um movimento para que o judô DI entre para as Paralimpíadas. Eu tinha esperança de que seria em Tóquio 2020, como uma apresentação pelo menos, mas não foi. Mas está cada vez crescendo mais e é um nicho que, hoje, é uma realidade que não dá para negar. É uma demanda crescente. A gente trabalha para isso e espera que aconteça, porque é uma questão até de respeito. O João treina seríssimo. Ele é um atleta, não está brincando de judô. E o judô DI é importante, porque ele abrange todo mundo. Então eu tenho certeza que um dia o judô DI vai estar nas Paralimpíadas. É uma questão de tempo”, pontuou Giovani.
Primeiro passo
Enquanto o judô para deficiência intelectual não ganha seu devido espaço nas Paralimpíadas, outros movimentos são feitos em prol da modalidade. O principal deles, aqui no Brasil, é a estruturação das regras de arbitragem do segmento, projeto encabeçado pelo maior árbitro de judô brasileiro, o Sensei Edson Minakawa.
“Esse segmento é uma lição de vida. Nós, na Confederação Brasileira de Judô (CBJ), estamos aproveitando esse período de quarentena e formando grupos para que a gente apresente dentro do site da CBJ as regras de arbitragem do Judô Para Todos. A ideia é que a gente faça isso chegar às pessoas, que elas saibam que existem outros segmentos do judô e que tem regras para esses segmentos. As pessoas desconhecem e ficam à margem disso. Pois existe sim e é um trabalho de inclusão maravilhoso. É obrigação de todos nós abraçar esses nossos irmãos e aprender com eles”, destacou o Sensei Minakawa ao Olimpíada Todo Dia.
Em busca da regulamentação
A documentação das regras do judô para deficientes intelectuais ou do chamado Judô Para Todos (que inclui também os deficientes auditivos) é parte de todo um processo de tentativa de legitimar e oficializar a modalidade no país, do qual Giovani também faz parte. Hoje, ele é Coordenador do Paradesporto da Federação Catarinense de Judô, técnico da seleção brasileira de judô DI e presidente da Associação Brasileira de Judô Inclusivo.
“Nós estamos oficializando aquilo que já existe há anos, para conseguir patrocínios e ir mais além. O Brasil é bem forte no judô DI, respeitado lá fora, inclusive. Temos um calendário de competição aqui, só não é oficializado pela Confederação. E por não ser esporte paralímpico, não tem direito à bolsa atleta, por exemplo. É um tanto quanto injusto. É como se a gente não existisse. Tem muita coisa do universo do judô DI que as pessoas não sabem, porque não tem divulgação. E ainda tem muita gente espalhada pelo Brasil. Então, agora, nossa Associação vai unir tudo isso”, explicou Giovani.
A ideia é que as regras estejam publicadas no site da CBJ já no mês de maio. E o Sensei Minakawa tem planos ainda maiores, mas pede cautela e paciência.
Visibilidade
A ideia é que as regras estejam publicadas no site da CBJ já no mês de maio. E o Sensei Minakawa tem planos ainda maiores, mas pede cautela e paciência.
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“Publicar essas regras é o primeiro grande passo para que as pessoas, independente de onde estiverem, saibam que existe e que judô não é só aquilo que passa na televisão. E aí, eu, como diretor de arbitragem da América do Sul, o próximo passo é que a gente provoque isso também no continente. Na sequência disso, as coisas vão começar a acontecer. Eu sinto nesse grupo uma necessidade de reconhecimento e há um movimento, mas nem sempre as coisas vão na velocidade que as pessoas imaginam que possa ter. Existem alguns protocolos e nós temos que cumprir”.
“A gente quer mostrar que não estamos com os olhos tampados. Pelo contrário. O que diz a minha consciência? ‘Minakawa, você teve o privilégio de ir à duas Olimpíadas. Agora, o que você pode fazer em prol da arbitragem?’ Nesse momento, o que eu posso é estar colaborando. Um dos segmentos, eu domino bem. Os outros, eu estou querendo aprender. É um eterno aprender e uma grande lição de vida. Existem adaptações e as regras são feitas para que todos possam participar. Eu acho isso maravilhoso! Estamos incluindo todos e isso é o mais bonito de tudo”, completou.
Pelo fim do preconceito
Além de passo importante na busca pela oficialização do judô para deficientes intelectuais , é um passo também pela tentativa de maior visibilidade para a causa, que ainda é pouco divulgada e pouco conhecida.
“Em 2017, tivemos quatro medalhas em Mundiais, incluindo a do João. E o que foi divulgado? As três medalhas do judô olímpico. Eu fiquei muito chateado… É um absurdo, um preconceito enorme. O Brasil teve quatro campeões mundiais, não três. Mas porque é deficiente intelectual não vale? A gente foi até lá, gastei o que tinha e que não tinha para ir… Existe um preconceito velado e é mais por ignorância, falta de conhecimento do que por maldade. Por isso que a divulgação de informações é muito importante. Eu sou voluntário em um site chamado AutismoS, e por meio dele a gente tem levado informação. O slogan, inclusive, é informação é inclusão”.
Para além do alto rendimento
A luta de João, Giovani, Minakawa e toda a comunidade do Judô Para Todos vai muito além do alto rendimento. Deficiências intelectuais, autismo e esporte formam um trio que vale ouro na vida. Quanto antes diagnosticado e mais cedo começar o tratamento, maior é a tendência de evolução. E o esporte pode ter um papel fundamental nesse processo.
“O judô traz um ganho excepcional para crianças com autismo ou qualquer outra diferença. O segmento DI é diferente. Eu tenho resultados, além do João, incríveis. De ganho de coordenação motora, de socialização. Uma criança que nem tocava em ninguém e que hoje, no judô, abraça. Isso é o principal”, relata Giovani, que tem ainda uma escola de judô inclusiva.
“Lembro da época que meu filho João não conseguia amarrar seu tênis, e hoje eu vejo ele fazendo exercícios com alto grau de complexidade e ainda faz faculdade de fisioterapia. Tenho um atleta que é autista não verbal e até para a perna dele movimentar para frente eu precisava auxiliar com as minhas mãos. E hoje ele já está movimentando sozinho. Então vejo no dia a dia dos treinos alunos se superando em vários pontos, e os ‘pequenos’ pontos são os mais importantes, para aprendermos a valorizar os grandes. Temos que comemorar cada passo dado. E tratar o autista não como alguém que precisa de sua pena, ou de um favor seu, mas tratá-lo como alguém que busca no esporte o que ele pode proporcionar”, completou.
Lei pela inclusão
Segundo dados da Organização Mundial Saúde (OMS), uma a cada 160 crianças no mundo tem autismo, assim como cerca de 2 milhões de pessoas somente no Brasil. Inclusive, no ano passado, foi aprovada uma lei que garante a inclusão de perguntas sobre autismo no Censo de 2020, para que se tenha dados oficiais sobre o número de autistas no país.
“Ainda tem muita criança autista ‘escondida’ em casa, que os pais acham que não pode fazer nada. E de novo, por isso a divulgação de informações é muito importante. A gente tem muitas declarações de pais contando que o filho começou no judô depois de ver o João”.
Hoje, dos 40 alunos Giovani, 12 são autistas. Isso sem falar dos alunos com outros transtornos e síndromes. No ano passado, a Copa de judô para deficientes intelectuais em Santa Catarina chegou a 90 atletas. Como o próprio Giovani disse, “é uma realidade e não dá para negar”.
Inspiração para as pessoas
“É uma causa. Uma causa para inspirar o máximo de pessoas possível e para levar informação. É muito aprendizado e por isso seria importante abrir essa janela e levar o judô DI adiante. Para que as pessoas conheçam e saibam que existe. É um trabalho de formiguinha, mas que vem dando resultado. A gente é sonhador e por isso vai atrás”.
Por fim, uma pessoa com conhecimento de causa encerra esta reportagem com um recado final. É Pedro Ferreira, psicólogo e irmão de João: “Se o autista, antes do diagnóstico, não for alguém, ele é ninguém. E no ninguém meu irmão não cabe. O quão valioso é o singular de cada pessoa. É ali onde ela se faz e continuará se fazendo. Igualdade é direito à diferença. E diferença é o que te faz alguém”.
A reportagem acima foi publicada nos últimos dias do mês da Conscientização Mundial do Autismo para lembrar e ressaltar que o Abril Azul termina, mas a conscientização sobre autismo deve e precisa continuar. Para mais informações, visite o site da Associação de Amigos do Autismo (AMA) e do portal AutismoS.