Do Globoesporte.com
Vizinhos olímpicos travam batalha com a Prefeitura para serem legados sociais
Projeto dos Jogos Rio-2016 prevê a remoção da Vila Autódromo. Moradores reivindicam investimento para realizar sonho de virarem comunidade-modelo
Gabriele Lomba
Rio de Janeiro
Graças ao dinheiro arrecadado com uma feijoada, a inacabada quadra, de terra batida, vai ganhar telhado. Ali, nada de escolinhas esportivas, nada de atletas promissores. Apenas crianças que se orgulham de serem vizinhas de duas das maiores instalações do Pan Rio-2007: a Arena da Barra e o Parque Aquático Maria Lenk. O projeto Rio-2016 não as inclui. Exclui. O terreno onde brincam, as casas onde moram e toda a comunidade Vila Autódromo vão virar o Centro Olímpico de Treinamento. Até lá, seus pais e parentes tentam vencer uma jornada tão desgastante quanto uma maratona. Em vez de serem removidos, eles querem virar personagens de um projeto-modelo de comunidades carentes e fazer parte do legado social dos Jogos. Veja uma galeria de fotos da Vila Autódromo, na Zona Oeste do Rio.
– A emoção pelas Olimpíadas não vale pela remoção do povo e não deve apagar o nosso passado, a nossa história – diz Jane de Oliveira, moradora da Vila há 30 anos.
A história a que dona Jane se refere é a de uma colônia de pescadores que, há mais de 40 anos, se formou ali, perto de uma lagoa. Naquela época, a luz era de lampião; o ferro, a carvão; e o fogão, a lenha. Hoje, cerca de 1.200 famílias dividem 374 lotes de terra ao lado do Autódromo de Jacarepaguá, instalação que está com dias contatos por causa dos Jogos.
A pendenga com a Prefeitura do Rio se arrasta desde o primeiro mandato de Cesar Maia (1996- 2000). Os moradores carregam sob os braços o documento do “Meu pé no chão”, um dos programas de regularização de terras criados pelo governo Brizola.
O caso, agora, é uma das tarefas do secretário municipal de Habitação, Jorge Bittar. Segundo sua assessoria de imprensa, as famílias serão reassentadas em uma área próxima ao autódromo. Elas integrarão o programa “Minha casa, minha vida”. Não haverá indenização. Na Vila Autódromo, há casas de dois andares. O dono de uma delas tenta vendê-la por R$ 90 mil.
Altair Antunes Guimarães, presidente da associação de moradores da Vila Autódromo, não acredita que a Prefeitura conseguirá apagar as memórias do lugar onde vive. Seu Altair, por sinal, conhece bem o significado da palavra remoção. Nasceu e foi criado na Ilha dos Caiçaras, comunidade removida sob alegação de que poluía a Lagoa Rodrigo de Freitas e matava os peixes. – Anos depois, concluíram que era necessário alargar o Jardim de Alá para que os peixes pudessem respirar. Sinal de que a culpa não era nossa, né? – sugere.
Da Lagoa – cartão-postal carioca -, seu Altair foi para a Cidade de Deus, comunidade que ficou famosa nas telas de cinema. O terreno dele, no entanto, ficava no trecho que daria lugar à Linha Amarela, via que liga a Zona Norte à Oeste. Não havia outra alternativa a não ser sair de lá. Há 15 anos, mora em uma casa construída por ele mesmo, em frente ao autódromo.
– Não sou contra as Olimpíadas. Sei que vão trazer benefícios para a cidade. Teremos mais empregos, mas também mais dinheiro indo para os bolsos dos políticos. Aqui não tem tráfico, não tem milícia, não fazemos mal a ninguém. Não temos asfalto nem saneamento. O governo não se lembrou de nos colocar no PAC porque somos poucos, não rendemos muitos votos – disse, referindo-se ao Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal.
Os responsáveis pelas melhorias por lá são os próprios moradores. É de dona Jane o projeto que coloriu o parquinho da Vila Autódromo, uma instalação que, assim como a quadra esportiva, foi presente de um candidato nas eleições de 2008. Jane reúne as crianças e as ensina atividades artesanais, como reaproveitamento de materiais descartáveis. Todo Natal, ela monta, na entrada da comunidade, uma árvore com garrafas de refrigerante recicladas.
– Se virássemos uma comunidade-modelo, poderíamos receber visitas de estrangeiros e até dos atletas que virão à cidade – conta.
Dona Jane e seu Altair não têm pretensão de ver algum de seus vizinhos defendendo a bandeira brasileira em 2016. Mas trabalham para que as crianças dali possam continuar, ao menos, jogando bola na quadra de chão de barro. Os vergalhões para o telhado, comprados com a renda da feijoada, aguardam, deitados à frente da associação, para serem instalados. Ainda falta dinheiro para comprar as telhas. O plano para completar o orçamento já foi traçado: depois da feijoada, um rodízio de pizza.