“Parece estadunidense, mas é brasileira”. Foi com essa frase que a narradora espanhola Paloma del Rio descreveu uma das melhores performances na arena de Anaheim, nos Estados Unidos, no dia 24 de agosto de 2003. Exatamente 20 anos atrás, Daiane dos Santos levantava o público na última apresentação do Campeonato Mundial de ginástica artística para entrar para a história, ao se tornar a primeira brasileira campeã mundial da modalidade.
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Naquela final, Daiane dos Santos tinha como principais adversárias a espanhola Elena Gómez, atual campeã mundial, e a romena Catalina Ponor, que viria a ser campeã olímpica no ano seguinte. Gómez conseguiu 9.675 pontos, enquanto Ponor tirou 9.700 na sequência para assumir a liderança. Fechando a final, Daiane dos Santos fez uma prova excelente e levantou o público com uma grande coreografia e acrobacias difíceis, incluindo o seu famoso duplo twist carpado. Ao final, 9.737 pontos e a medalha de ouro para a brasileira.
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Trabalho em equipe
Para Daiane, o ouro no Campeonato Mundial foi fruto de um trabalho que iniciou com gerações anteriores e foi lapidado com a criação da seleção permanente em 2001. “Eu acho que o Mundial ali foi uma construção de muito tempo. Ela veio no momento em que a gente mudou o formato de trabalho no Brasil com a seleção permanente, que deu uma equidade de trabalho ali para 22 meninas poderem mostrar o seu potencial. E chegar ao título mundial foi graças a esse trabalho que foi lapidado ali entre 2001 e 2008”, afirmou a campeã mundial em entrevista ao Olimpíada Todo Dia.” A coreografia foi a Sandra que fez, assim como a Adriana Alves e o Kiko que trabalharam comigo. E o Oleg Ostapenko me lapidou”, completou Daiane
A ex-ginasta também lembra dos percalços para chegar até o Mundial e conseguir competir em alto nível. Daiane dos Santos passou por várias lesões durante a carreira e precisou operar o joelho algumas semanas antes do Mundial de 2003. “Quando eu subi ali no topo do pódio, não era só a Daiane campeã do mundo. Foi resultado de muitas pessoas que participaram do trabalho. Dois meses antes eu operei do joelho. Como eu estaria no Mundial se não tivesse gente me tratando e cuidando de mim 24 horas por dia? Também tinham as meninas que treinavam junto comigo, me estimulando a ser cada vez melhor. Porque aquela equipe tinha Dani, Camila, Laís, todas elas estavam ali e eu queria estar com elas e fazer parte desse momento”, afirmou.
Geração histórica
O Brasil mudou de patamar no cenário internacional da ginástica artística no ciclo olímpico de Atenas. O período começou com a inédita prata de Daniele Hypólito no solo no Mundial de 2001, culminando no Mundial de 2003, onde além do ouro de Daiane, pela primeira vez o Brasil se classificou para a final por equipes, terminando na sétima colocação com Ana Paula Rodrigues, Camila Comin, Caroline Molinari, Daiane dos Santos, Daniele Hypólito e Laís Souza,. Dessa forma, a equipe brasileira também conseguiu uma classificação inédita para os Jogos Olímpicos Atenas-2004.
“Até aquele momento, o Brasil era conhecido como um país de uma ginasta só. A gente tinha sempre só uma ginasta que era boa. Primeiro a Luisa Parente, depois a Soraya Carvalho e a Dani. E depois de Anaheim, mesmo tendo o meu título, a situação mudou com essa geração que conseguiu classificar o time para Atenas. Não somos mais um país de apenas um talento: somos múltiplos talentos”
Duplo twist carpado
Uma acrobacia em especial ajudou Daiane dos Santos a levar a medalha de ouro no solo e entrou na memória dos brasileiros: o duplo twist carpado. Na acrobacia, a ginasta salta de costas, mas dá um meio giro no ar para completar dois mortais para frente na posição carpada. Assim como outros elementos inéditos na ginástica artística, o duplo twist carpado levou o nome da ginasta no código de pontuação da modalidade.
E mais do que escrever o nome de Daiane na história do esporte, o “Dos Santos” entrou para o linguajar do brasileiro. O duplo twist carpado se tornou um sinônimo para algo difícil. “Acho muito legal quando o pessoal comenta que fez uma coisa difícil e fala: ‘hoje eu fiz um duplo twist carpado’. E acho esse comparativo muito legal até porque faz com que a pessoa conheça o esporte, da pessoa ir atrás de onde surgiu essa expressão. Muito incrível que fui eu quem fiz. E mais incrível ainda que as pessoas lembram”, brinca a ex-atleta.
O Brasileirinho
No ano seguinte, em 2004, Daiane dos Santos lançou uma nova coreografia para os Jogos Olímpicos de Atenas. Ao som do chorinho “Brasileirinho”, de Wladir Azevedo. A série, que a ginasta também utilizou na Olimpíada seguinte, entrou para a história da ginástica brasileira e marcou a carreira de Daiane. “É a melodia que embala a minha carreira. Sempre brinco se um dia eu casar vai ser a música que vai tocar no meu casamento. É muito legal porque até o nome as pessoas mudaram e às vezes chamam de Brasileirinha”.
A série foi desenvolvida por Rhony Ferreira, que até hoje é coreógrafo da seleção brasileira, tendo feito outras coreografias marcantes como o “Baile de Favela” que Rebeca Andrade utilizou nos Jogos Olímpicos de Tóquio. “Foi um momento que a gente quis agraciar a cultura do Brasil. A gente vê hoje o Baile de Favela passando por um processo parecido atualmente, que muita gente fala que não é cultura. Lá nos anos 1940 muita gente falava que o chorinho era música de vagabundo e atualmente tem gente que menospreza o funk. Então Rebeca vem e é campeã com o Baile de Favela, isso mostra que cultura popular também é cultura. E também trazem medalhas”.
E assim como o Baile de Favela chama atenção do público atualmente, o Brasileirinho também era uma grande atração onde quer que Daiane dos Santos fosse competir. “Rhony sempre trabalhou muito bem nas coreografias essa espontaneidade de se entregar ao máximo e essa resposta a gente vê dentro do solo. A ginástica exige muito hoje do artístico, daí ter uma música que chama o público como o Brasileirinho ou o Baile de Favela faz a diferença”, completou.
Inspiração
Em 2003, além de conquistar um feito inédito para o Brasil, Daiane dos Santos também conseguiu uma marca histórica na ginástica artística internacional. Ela se tornou a primeira mulher negra campeã mundial na modalidade. Daiane falou da importância de servir como um referencial para meninas pretas no esporte: “Dentro da ginástica a gente acaba se inspirando em outras mulheres pretas. Na época tinham outras meninas pretas como a Ana Paula Rodrigues. Mas eu me inspirei muito na Dominique Dawes, dos Estados Unidos, que foi ouro com a equipe do país em Atlanta e ela também tem medalha olímpica no solo. E mulheres de outros esportes como Aída dos Santos, Melânia Luz. Elas passaram por muitos desafios e quebraram barreiras. Dona Aída foi quarta colocada na Olimpíada com praticamente nenhum apoio. Essas mulheres me inspiraram, assim como as mulheres da minha família, como minha mãe e minha avó.”
Legado
Atualmente, Daiane dos Santos ainda atua de duas formas na ginástica: com seu Projeto Brasileirinhos, que trabalha a iniciação de crianças no esporte e também como comentarista em transmissões da TV Globo. Durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, viralizou um vídeo onde Daiane reagia às apresentações de Rebeca Andrade na final do individual geral, onde ela conquistou a primeira medalha olímpica da ginástica artística feminina do Brasil. E Dai se emocionou muito durante a transmissão.
“A gente estava com a medalha olímpica entalada na garganta há muito tempo. Passou muito perto comigo, com a Jade, com Flávia. Mas eu penso que no final tinha que ser ela. Rebeca veio com tantos fatores que dificultaram a medalha. Ela é uma representação real da mulher brasileira. Menina preta, vindo da comunidade que entrou no esporte por acaso. E isso é a história de várias meninas brasileiras. Talento não falta no Brasil, o que falta é oportunidade. E a oportunidade foi dada a Rebeca e ela aconteceu.”
Hoje em dia, Daiane dos Santos espera que o seu legado seja continuado através de Rebeca e de nomes que ainda irão brilhar na ginástica brasileira. “Quando uma menina hoje em dia que olha para a Rebeca e pensa: ela tem uma história igual a minha, se ela chegou lá eu também posso. E aí vai da gente que está do outro lado apoiar e incentivar. Toda vez que a Rebeca tá ali no pódio, ela ajuda a mudar a vida de várias brasileiras. É o nosso legado do bem, nossa esperança”, finalizou.