A perda de um grande líder sempre abre uma lacuna difícil de ser preenchida. Ainda mais quando essa liderança é exercida por um “fora de série”. Foi exatamente essa dificuldade que a canoagem velocidade do Brasil passou com o falecimento do treinador Jesus Morlán em novembro de 2018. O espanhol revolucionou a modalidade no Brasil, levando Isaquias Queiroz a ser o maior medalhista brasileiro em uma única edição dos Jogos, e foi o mentor de David Cal, recordista de medalhas olímpicas da Espanha, com cinco pódios.
Morlán deixou para o sucessor a responsabilidade de manter a modalidade no caminho das medalhas. Mas a escolha de quem continuaria o trabalho dele, que poderia ser uma escolha muito difícil, acabou sendo natural. Lauro de Souza Júnior, o “Pinda”, que já retornou às atividades normais na base de Lagoa Santa, região metropolitana de Belo Horizonte, depois do fim do treinamento de campo da equipe em Capitólio (MG), foi consenso entre atletas, Confederação Brasileira de Canoagem (CBCa) e Comitê Olímpico do Brasil (COB). Uma decisão acertada, até porque foi preparada pelo próprio Morlán.
“Pinda foi uma peça fundamental para que a seleção brasileira de canoagem não viesse a afundar. Ele esteve ao lado do Jesus nos momentos mais difíceis e era a única pessoa no Brasil capacitada na parte técnica, no planejamento, nas planilhas”, disse o medalhista olímpico Erlon Souza.
“O treinador tem que ter sensibilidade de olhar para o atleta, sentir o cansaço, aumentar ou diminuir a intensidade do treino de acordo com o que tá vendo. O Lauro aprendeu bastante com Jesus e tem essa sensibilidade. Com a pandemia, teve que modificar o trabalho anual de preparação para Tóquio e repensar para 2021. Soube trabalhar muito em cima disso”, completou Isaquias.
“Minha maior virtude é a paixão que eu tenho pelo que eu faço. Eu sempre quis ser treinador de canoagem, meu sonho sempre foi esse. Isso é o que faz a diferença, no meu modo de ver”, definiu Lauro.
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Esse sonho começou aos 13 anos quando, passeando a cavalo em uma fazenda na cidade natal dele, Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, viu um grupo se preparando para remar na represa local. Fez uma aula na escolinha e nunca mais largou a canoagem. Chegou a representar o Brasil nas categorias de base, sem muito destaque. Com 16 anos, colocou na cabeça que queria ser treinador e foi para o Paraná em busca do sonho. Cursou Educação Física, fundou um clube e começou a revelar alguns atletas depois de cerca de três anos de trabalho.
“Comecei a ser convocado pela Confederação como treinador das categorias de base. Em 2013, teve um projeto grande da CBCa que reuniu todas as seleções em São Bernardo do Campo (SP). Coincidiu com a vinda do Jesus Morlán, nosso mentor, que eu conheci lá. A gente teve uma relação muito boa e ele acabou me convidando para ser auxiliar-técnico dele, o que eu, prontamente, aceitei. Ali minha vida profissional mudou”.
De treinador para técnico
Pinda costuma dizer que achava que era treinador, mas realmente foi entender o que é ser técnico quando foi morar com Jesus e passou a conviver diariamente com o espanhol. “No primeiro dia, voltamos do treinamento, chego em casa e vou assistir televisão. Ele estava no escritório, no computador, mexendo nos dados dos treinamentos e fiquei observando. Segundo dia, de novo. Terceiro, mesma coisa. E eu comecei a entender que a gente trabalha mais no escritório, fora d’água que nas sessões de treino. E eu passei a gostar disso também”.
Em 2015, Pinda assumiu a equipe feminina e recusou o convite de Jesus para se mudar para Lagoa Santa, base criada para reunir os principais canoístas do país, visando o Rio 2016. Alguns meses depois dos Jogos Olímpicos, Jesus descobriu que estava com câncer e começou o tratamento. Lauro já não estava mais na equipe feminina e pensava em desistir da carreira quando recebeu um telefonema.
“No final de 2016, Jesus me ligou e perguntou se eu queria ir para Lagoa Santa trabalhar com ele. Eu respondi que ia no dia seguinte se fosse preciso. Ele pediu uma semana e conversou com o COB, que providenciou meu retorno pra equipe. Passei a morar com ele novamente no início de 2017”.
Mas as coisas já não eram iguais. A saúde de Jesus já estava bastante fragilizada e o treinador passou a tomar algumas medidas que, num primeiro momento, pareceram estranhas, mas depois se encaixaram para todos os envolvidos.
“Ele passou a não dividir mais a casa com a gente, foi morar dentro de um hotel. Parece que isso foi para testar como seria o funcionamento da equipe na ausência dele. E sempre nas nossas conversas, ele colocava umas situações como “você tem que pensar nisso aqui”, “você tem que olhar isso”, “isso aqui é importante você fazer”, “você tem que ter o olho nessa direção”. Ele estava preparando a despedida dele. Obviamente, a gente nunca quer aceitar isso, mas quando aconteceu, apesar do baque, eu senti uma segurança que eu tinha as condições para tocar o trabalho que o Jesus vinha fazendo”.
Apesar da responsabilidade de dar seguimento a um trabalho de muito sucesso, os resultados apareceram logo no ano seguinte à perda de Morlán. “No início foi bem complicado, mas, felizmente, conseguimos manter os resultados, que foram exatamente os mesmos do qualifying em 2015. O que mudou foram as provas. Tínhamos sido campeões no C2 e bronze no C1. Em 2019, fomos campeões no C1 e bronze no C2.”
Apaixonado pelo que faz, pelo planejamento, pelas planilhas, logicamente, Pinda já tem os próximos objetivos traçados. Mas sempre pensando um passo de cada vez como o mentor dele o ensinou.
“Passei de ser um treinador desconhecido para ser um campeão do mundo. O próximo passo é manter a equipe na rota das medalhas e me tornar um treinador medalhista olímpico. Mas o meu grande desejo, quando eu vou olhar e dizer que estou realizado, é o dia que a gente conseguir tornar o Brasil uma potência na canoagem. E isso só se consegue quando gerações de atletas conquistando resultados. Aí vou estar realizado profissionalmente”, finalizou Pinda.