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Mulheres-Maravilha: Raíssa Machado tem mãe como espelho

Mãe solteira, Dona Ildonete lutou para criar três filhos. Hoje, ela é mãe de uma campeã pan-americana e recordista das Américas

Raíssa Machado - Dona Ildonete - Mãe - Dia das mães
Raíssa Machado e sua mãe Ildonete (Arquivo pessoal)

Não é todo mundo que tem o privilégio de ter uma heroína em casa. Mas Raíssa Machado não é todo mundo. Guerreira por sangue, ela tem a sua própria Mulher-Maravilha: a Dona Ildonete, sua mãe. Duas baianas arretadas, que não se deixaram abater, mesmo quando a vida lhes impôs, não um, mas vários obstáculos. Hoje, elas olham no espelho e vêem uma campeã Pan-Americana e recordista das Américas no lançamento de dardo. Mas acima de tudo, elas veem mãe e filha. Elas veem história. 

Dona Ildonete nasceu na cidade de Ibipeba, Bahia, e se mudou para Uberaba, Minas Gerais aos 20 anos. Trabalha desde os 12 e não pôde terminar a escola. Aos 23, sua vida mudou completamente, quando engravidou de Raíssa. A maternidade não estava nos planos, mas aconteceu. E obrigou Dona Ildonete a mostrar toda sua força, quando se viu mãe solteira.

“Para falar a verdade, na época, foi um choque. Não é fácil né? Você tem um relacionamento, pensa que tudo vai dar certo, e de repente, fica sozinha. Mas eu sou meio durona com as coisas. Eu simplesmente coloquei as regras: se ele não podia cuidar, estar presente, ele não ia ver a filha. Foi isso que eu fiz e não quis mais ter contato com ele. E aí eu tive muitas pessoas em volta que conversavam comigo, me punham para cima e eu acostumei, gostei e no final foi bom. Valeu a pena passar por tudo que a gente passou”, contou ao Olimpíada Todo Dia. 

+De monstro à deusa: conheça Raíssa Machado

No final da gravidez, Dona Ildonete voltou para sua cidade na Bahia para ficar perto de sua mãe. Lá, deu a luz à Raíssa, que nasceu com má formação congênita. Aconselhada a procurar um lugar com mais estrutura para cuidar da filha, voltou para Uberaba, onde mora até hoje. 

Dona Ildonete sempre teve a sorte de contar com boas pessoas ao seu redor, que a ajudaram nos momentos mais difíceis, inclusive pagando um médico particular para a filha. A pequena Raíssa precisou passar por três cirurgias e por pouco, não foram quatro.

Tal mãe, tal filha

“Na última cirurgia, o médico deu a anestesia, mas veio falar que não podia operar ela, porque ela ficaria em uma cama, sem se mover, dependendo de todo mundo para fazer as coisas. Imagina se tivesse feito? Ia ficar pior. Porque hoje ela não depende da gente para nada”, relembrou.

Até os seis anos de idade, Raíssa não tinha cadeira de rodas, até que ganhou uma da prefeitura. Pelo lado físico e de locomoção, o presente significou muito para Dona Ildonete. Para Raíssa, no entanto, foi difícil de digerir. 

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“Desde pequena olhava no espelho e me achava muito estranha. Eu mesma tinha um preconceito comigo. Por que eu tenho as pernas tortas? Por que eu tenho que estar em uma cadeira de rodas? Aquilo me incomodava e eu não achava que eu fazia parte desse mundo. Eu não me encaixava, sabe?”, contou Raíssa.

Apesar das adversidades, Raíssa foi forte. E teve a quem puxar. “No começo, ela não se aceitava, se olhava em cima da cadeira de rodas e achava que não era ninguém. Mas ela sempre foi guerreira, igual a mim e eu nunca passei a mão na cabeça dela sabe? Para ela não se sentir pior do que ninguém. Ela tinha que entender que era igual a todo mundo e que podia fazer tudo, sem depender das outras pessoas. Que ela é inteligente e dá conta de tudo, tem competência para isso”, contou Dona Ildonete.

“Minha mãe foi muito importante para mim por não me achar uma coitada, por não achar que precisava me proteger do mundo. Ela me deixou para o mundo. Me deixou quebrar a cara e nunca me tratou como uma pessoa que não podia fazer nada. Ela sempre me tratou como uma pessoa normal. Ela falava: ‘Você vai limpar a casa, vai fazer comida. Hoje eu estou aqui, mas amanhã eu posso não estar’. E hoje eu moro sozinha e sei fazer tudo por causa dela”, completou Raíssa.

Fã nº1

A descoberta de seu talento para o esporte mudou a vida da Raíssa. Depois de passar pela ginástica artística, inspirada por Daiane dos Santos, a pequena baiana encontrou no lançamento de dardo um novo caminho. Mesmo um pouco à contragosto, passou a treinar, competir e, à medida em que tudo foi ficando mais sério, o amor pela modalidade foi crescendo junto. 

De repente, Raíssa Machado se viu conquistando uma medalha de bronze no lançamento de dardo no Mundial de Atletismo de 2015 e representando o Brasil nas Paralimpíadas do Rio. Nada disso, porém, teria sido possível sem Dona Ildonete.

“Desde que eu comecei no esporte, apesar das nossas dificuldades, ela sempre arrumou um dinheiro para eu poder ir aos treinos, encontrar o pessoal. Aqueles 15 reais que ela pegava emprestado com o pessoal, com a chefe dela, para tentar me incentivar, me colocar para cima e para eu ser uma atleta boa… Então ela esteve sempre do meu lado e devo muito a ela e à minha família, porque sem eles, eu não estaria onde estou hoje”. 

Parceria mesmo à distância

Raíssa Machado - Dona Ildonete - Mãe - Dia das Mães - Batalhadora - Lançamento de dardo
Raíssa foi campeã do Pan de 2019 (Instagram/RaissaRochaMachadooficial)

“Eu sempre apoiei. Falava que ela não era obrigada a fazer nada que não quisesse, mas que era algo importante e que daria o que ela queria”, contou Dona Ildonete. 

Desde 2013, Raíssa mora em São Paulo e treina lançamento de dardo no Centro de Treinamentos Paralímpico do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Os anos passam, a distância física aumenta, a saudade aperta, mas uma coisa não muda: a parceria entre mãe e filha. 

“Todos os problemas que eu tenho, quando acontece alguma coisa, fico chateada, eu ligo para ela, porque eu sinto muita falta de uma palavra de mãe. A primeira pessoa que a gente sempre vai procurar é a mãe né?. E ela me conforta. E em todas as competições, algumas horas antes, eu sempre preciso conversar com ela. Eu entro mais confiante com a palavra dela sabe?. E eu sei que, se eu ganhar ou perder, todos podem virar as costas para mim, mas ela nunca vai”. 

Mulheres-Maravilha

Dona Ildonete trabalha há mais de 20 anos nos serviços gerais Hospital Escola de Uberaba, limpando uma das principais unidades de saúde da cidade mineira. Se desdobrou para criar três filhos sozinha, mas nunca deixou a peteca cair. E hoje, graças ao esporte e ao lançamento de dardo, Raíssa Machado retribui e consegue ajudar a família. O dia das mães que o diga. 

“Ela lutou sozinha. Nunca teve apoio dos pais… Lutou sozinha para conseguir manter os três filhos, o aluguel. Hoje, como atleta do lançamento de dardo, ganhando bolsa, eu consigo ajudar ela também. A gente não tinha dia das mães antes. Não tinha dinheiro para dar nada para ela. E hoje eu já consigo dar um presente, a gente faz um almoço, um churrasquinho. E não é só ela, são as minhas tias também, que ajudaram a me criar e eu considero como mães”. 

“A Raíssa significa tudo na minha vida. Ela me ajuda, ajuda os irmãos e faz tudo que puder pela família. Fico muito feliz de ver a pessoa batalhadora e que mostrou para todo mundo que não acreditou nela que ela é capaz. No começo foi difícil, ela não se aceitava, achava que nunca ia ter um namorado… E eu sempre dizia como ela era bonita e que ela ia encontrar alguém. Eu penso que ela tem que ter alguém, arrumar uma pessoa para vida, mas homem não é tudo na vida de ninguém, não. E ela me puxou na coragem de lutar”, ressaltou Dona Ildonete.

Raíssa Machado ainda não pensa em ser mãe. Talvez daqui uns dez anos… Fato é que exemplo para criar seu futuro filho ou filha não vai faltar. “Minha mãe sempre foi uma inspiração, uma motivação. Nunca dependeu de ninguém, independente da dificuldade que esteja passando, dos problemas que têm, sempre dá a volta por cima, batalhando. Ela não sabe ler, não sabe escrever, mal escreve seu nome, e é muito inteligente. Eu sempre falo isso para ela… como ela é inteligente. Minha mãe é um espelho para mim de mulher e eu resumo ela como a Mulher-Maravilha”.

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