Enquanto Jovane Guissone conversa, o som de cacarejos ao fundo chama atenção. “Acha que a vida de atleta é só jogar e treinar?”, pergunta, rindo, à reportagem da Agência Brasil. Campeão paralímpico na esgrima, o gaúcho de 37 anos saiu ‘da roça’, como ele mesmo diz, para conquistar o mundo.
“Onde eu moro, tenho uma criação de galinhas. Tenho as minhas verduras, meus cachorros… Sempre digo que saí da roça, mas ela não saiu de mim. Trabalhei até os 18 anos com meus pais na lavoura. Gosto dessa vida de mato. Isso me recarrega as energias”.
De espada em punho e a bordo de uma cadeira de rodas, fez história ao conquistar a primeira medalha paralímpica do país na esgrima – e foi logo a de ouro – nos Jogos de Londres (Reino Unido), em 2012. Isso apenas quatro anos após conhecer a modalidade que lhe deu novo rumo à vida, transformada em 19 de novembro de 2004: durante um assalto Jovane foi alvejado e a bala alojada na coluna o deixou o paraplégico.
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Da roça para o mundo
“Eu morava em um bairro na periferia de Esteio (cidade na região metropolitana de Porto Alegre, onde ainda vive). Era complicado, de difícil acessibilidade. Pelos meus resultados (no esporte) consegui patrocínios, apoio, então consigo ter uma estrutura melhor. Uma casa acessível, viajar com a família… São coisas que eu sonhava ter e hoje tenho”, diz o esgrimista, segundo colocado no ranking mundial nas provas de espada e 10º nas de florete na categoria B (atletas com menor mobilidade no tronco e equilíbrio).
Alcançar o sonho, porém, demandou resiliência no ciclo que antecedeu à glória em solo britânico, mesmo após duas medalhas em etapas da Copa do Mundo: um bronze em 2011, no Canadá – primeiro pódio brasileiro na modalidade -, e uma prata em 2012, na Alemanha. “Às vezes, competia com um material emprestado pelos atletas da esgrima convencional que não era bem adequado à minha deficiência”, lembra.
“Depois que ganhei o ouro em Londres, muitas portas se abriram. Consigo dar um sustento melhor à família e fico tranquilo se viajo para competir, sei que eles estão bem, com estrutura melhor”, completa o atleta, atualmente contemplado com a Bolsa Pódio, patamar mais elevado do programa Bolsa Atleta.
Como os 15 primeiros de cada arma (espada, florete e sabre) vão automaticamente para os Jogos de Tóquio, hoje Jovane Guissone estaria garantido na Paralimpíada de Tóquio (Japão) para buscar a medalha que escapou há quatro anos, quando chegou ao Rio de Janeiro recém-tratado de uma ruptura de grau quatro no braço direito e caiu nas quartas de final. “Acho até que fui longe. É diferente de agora, que estou 100% de saúde”, garante.
Pandemia indigesta
As consequências da pandemia do novo coronavírus (covid-19) no esporte – a necessidade de interromper os treinos externos e o adiamento dos Jogos de Tóquio para 2021 – não foram boas para o gaúcho. “Foram quatro anos de muito trabalho e dedicação. Estávamos em um ritmo forte. Tivemos que ficar mais em casa, tendo cuidado para não pegar o vírus. Foi muito ruim, não só para mim, mas para todos os atletas”, avalia.
Não é exagero. Antes da esgrima em cadeira de rodas parar devido à pandemia, o gaúcho tinha vencido a etapa de Eger (Hungria) da Copa do Mundo. Na sequência, disputaria dois torneios em São Paulo, a etapa brasileira da Copa e o Regional das Américas – todos os eventos foram cancelados. Por enquanto, a Federação Internacional do Esporte para Amputados e Cadeirantes (IWAS, sigla em inglês), responsável pela modalidade, ainda não definiu a sequência do calendário, nem se haverá mudança nos critérios de classificação.
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“Extraoficialmente, há uma ideia de se congelar o ranking como está agora e, no ano que vem, só realizar as competições que faltavam (as de São Paulo). Como o Jovane está bem colocado, mesmo se ele não for tão bem, nesse caso, não faria uma diferença muito grande”, diz Ivan Schwantes, técnico da seleção brasileira de esgrima em cadeira de rodas.
Sem parar
Enquanto o isolamento continua, Jovane improvisa. Em casa, onde mora com a família, adaptou duas cadeiras de rodas e um boneco para simular um adversário e exercitar os movimentos. Até o filho, Jovane Júnior, que tinha um ano quando o pai foi campeão em Londres, ajuda nos treinos caseiros. “Ele tinha começado na esgrima, mas, como o local de treino era longe e ele estuda de manhã, além de fazer inglês à tarde, demos prioridade aos estudos. Hoje, ele tem oito anos e parece que a saudade é maior a cada viagem que faço”, revela.
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Se por um lado a quarentena dá mais tempo para Jovane Guissone curtir o filho, a enteada e a esposa, por outro, ele não vê a hora de retomar a rotina que o deixou no auge físico e técnico para Tóquio. “A gente torce para que tudo isso passe rápido e possamos voltar a treinar normalmente. A Paralimpíada já é ano que vem e temos que estar ainda melhor preparados para buscar o resultado lá”, conclui.