Uma tragédia chocou o atletismo nacional em 2009. Uma semana depois de conquistar o vice-campeonato na prova de 50 km da Copa Brasil de marcha atlética, Rafael dos Anjos Fontenelle Duarte foi encontrado morto na piscina do prédio onde morava, em Brasília. Uma perda que abalou o esporte e uma cidade que despontava como celeiro de marchadores.
Rafael tinha 25 anos e uma carreira promissora. O professor Valtinho da Silva era o treinador dele. Ele ganhou projeção internacional ao terminar o Campeonato Mundial Juvenil da Jamaica, em 2002, em quarto lugar. O jovem era esperança do esporte e despontava para representar o país durante os Jogos Olímpicos de Londres 2012. O sonho, porém, foi interrompido no domingo de 22 de fevereiro quando o porteiro do prédio o encontrou afogado.
A morte impactou uma geração de novos talentos que tinha o atleta como espelho. Entre os companheiros que dividiam as pistas de treinamentos, o jovem Caio Bonfim se destacava. Anos depois, Caio se tornou o maior marchador da história do Brasil. “Ele sempre foi uma grande referência para mim e me ensinou muitas coisas sobre a marcha atlética. Ele ficava horas durante os treinos na pista me explicando muitas coisas. Foi realmente uma perda muito grande para o esporte”, recorda o medalhista mundial Caio Bonfim, de 29 anos.
Fontenelle é fruto do trabalho da semente plantada pelos resultados da ex-marchadora Gianetti Sena, mãe de Caio. João Sena, pai/treinador de Caio e marido de Gianetti, relembra do bom momento em que o esporte estava vivendo em Brasília antes da tragédia de 2009. “Com a Gianetti Sena surgiu o Rafael. Ele foi um garoto igual ao Caio, com um talento enorme. Ele foi o quarto do mundo, foi campeão brasileiro, campeão sul-americano e estava despontando para as Olimpíadas de Londres. A morte dele deu uma marcha à ré, porque o Caio estava surgindo e os dois eram amigos. Isso atrasou um pouco a nossa deslanchada como uma escola de marcha atlética”, revelou o treinador.
Brasília só veio a se fortalecer como a capital com vocação para a marcha atlética quatro anos depois. Foi quando o “patinho” feio do atletismo passou a se posicionar entre os melhores do mundo, melhorou os resultados internacionais e superou o preconceito contra a modalidade por conta do “rebolado” dos atletas, que tornava os atletas alvos corriqueiros de comentários homofóbicos durante os treinamentos nas ruas.
“Brasília hoje ser essa referência na marcha é fantástico. A minha mãe começar isso tudo, ser a primeira, sofrer todo aquele preconceito, a luta, a falta de valorização. Ser a extensão de tudo aquilo que eles construíram é incrível, porque eles têm essa equipe desde 1983, a minha mãe marcha desde 1996 de fato. É uma responsabilidade também, buscar novos talentos. Gostamos desse momento, trazer a marcha atlética para o Brasil e depois popularizar ela dentro do atletismo. Não podemos parar dentro e fora das pistas”, completou Caio.
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A tradição na cidade começou com os marchadores pioneiros como Waldemar Florêncio da Silva nas décadas de 70 e 80. Porém, o movimento ganhou força a partir de 1996, por meio das passadas de Gianetti. Ela se tornou heptacampeã brasileira e colocou a capital no mapa do esporte no Brasil. “A minha primeira grande atleta foi a minha mulher Gianetti. Em 1996, ela foi campeã brasileira, sul-americana e ibero-americano. Com ela que começou forte esse movimento da marcha em Brasília”, conta João Sena.
“Em 1996 meu tio me chamou para buscar minha mãe no aeroporto, disse que ela tinha ganhado a Copa Brasil de Marcha. No aeroporto ela me deu o seu troféu para segurar e me lembro de ler: Campeã da Copa Brasil de Marcha. Falei para mim, eu quero isso para minha vida, quero ser um atleta. Desde então, minha mãe foi campeã 8 vezes consecutivas da Copa Brasil”, escreveu Caio Bonfim no Instagram no post de comemoração quando igualou a marca histórica de oitavo título nacional.
No início da carreira, Caio Bonfim teve o privilégio de ter a mãe como companheira de treino. “Eu tinha contato com ela no treino e na dedicação. Lembro uma vez de ver ela marchando 40 minutos na varanda que dá volta de casa. São coisas que sempre me inspiraram. Quando ela acabou a carreira eu estava destacando nas categorias de base e ela sempre teve uma visão de prova muito boa e veio me ajudar na parte técnica”, relembra.
Caio aprendeu desde cedo que nada neste mundo é dado de presente. No esporte e na vida, o resultado vem com muito esforço. Tanto que a vida do atleta sempre foi uma luta constante. Ele aprendeu desde cedo o padrão de disciplina, determinação, raça, compromisso e dedicação.
Toda dedicação foi convertida em resultados. Caio foi medalhista de bronze no Campeonato Mundial de Atletismo de 2017, prata nos Jogos Pan-Americanos de Lima 2019 e bronze no Pan de Toronto 2015. Nos Jogos Olímpicos do Rio 2016, conseguiu o melhor resultado da história do país na marcha atlética, terminando a prova de 20 quilômetros na quarta colocação, em 1h19m42 – novo recorde brasileiro. Ele ficou a apenas cinco segundos do medalhista de bronze, conquistada pelo australiano Dane Bird-Smith.
“Desde os 10 anos, quando fez a primeira marcha, o Caio apresentava uma diferença enorme em comparação aos adversários. Ele tem uma diferença em comparação aos outros é em relação ao sofrimento. Ele se sacrifica mais para a vitória e não tem medo de gastar energia durante a prova. No final é surpreendente, porque ele nunca desiste da vitória. Essa é a grande diferença, com todos os testes que já fizemos psicologicamente, o Caio é quase um atleta perfeito para a vitória”, disse o pai treinador.
A marcha atlética é um esporte peculiar. O maior desafio do atleta é ser veloz e, ao mesmo tempo, respeitar as regras da marcha, sem tirar os dois pés do chão ao mesmo tempo. Atualmente, o clube comandado por João Sena em Brasília conta com cerca de 40 atletas. Se comparar com outros esportes como futebol ou vôlei, o número pode ser considerado pequeno, mas para a realidade da marcha, o esporte reúne muitos jovens que acreditam no esporte. Entre as novas promessas da modalidade, o projeto, que conta com o patrocínio da Caixa Econômica Federal, conta com Max, Elianay Pereira e Gabriela Muniz, campeã nacional sub-20 com recorde brasileiro no ano passado. O futuro do esporte está sendo construído e impulsionado por meio do patrocínio da Caixa, como ressalta a presidente do Clube, Gianetti Sena. .
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Na cidade em que os moradores não contam com o clube de futebol para torcer, o atletismo passou a inspirar e levar o nome de Brasília para os quatro cantos do mundo. Com o adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio, Caio Bonfim ganhou mais tempo para treinar e, quem sabe, recuperar os cinco segundos dos últimos Jogos e garantir a inédita medalha olímpica em homenagem ao Rafael, a sua mãe Gianetti e a cidade que aprendeu a valorizar a marcha.